Papo de Mãe

Negar vagas para pessoas com deficiência em escolas regulares agora é crime

Roberta Manreza Publicado em 15/01/2016, às 00h00 - Atualizado às 10h07

Imagem Negar vagas para pessoas com deficiência em escolas regulares agora é crime
15 de janeiro de 2016


Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê multa e prisão de até cinco anos para quem negar matrícula em instituições de ensino para alunos especiais

Por Fernanda da Costa, de Porto Alegre-RS – ZH Educação
Negar vagas para pessoas com deficiência em escolas regulares agora é crime Júlio Cordeiro/Agencia RBS

Pais de Tarso, quatro anos, tentaram vagas em nove escolas. Foto: Júlio Cordeiro / Agencia RBS

A busca por uma vaga em uma escola regular para o filho com síndrome de down não foi nada fácil para Rosangela Fellini Fachinetto, 47 anos, e o marido Rubens Beck, 51. A contadora e o publicitário tentaram matricular Tarso, quatro anos, em nove estabelecimentos de Porto Alegre até de ouvir um “sim”, no décimo.

Antes ilegal, agora passou a ser crime para todas as escolas a recusa da vaga. A infração é prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor há cerca de uma semana. Nas particulares, também passou a ser crime cobrar uma taxa extra para aceitar alunos especiais. Avanços que os especialistas consideram um passo a mais no caminho do Brasil rumo à educação inclusiva.

Mesmo assim, o drama de Rosangela e Rubens está longe de ser exceção. Representantes de associações de pais de crianças com síndrome de down e autismo relataram à reportagem ouvir com frequência queixas de quem encontrou portas fechadas na hora de matricular o filho.

A presidente da Associação dos Familiares e Amigos do Down de Porto Alegre (Afad), Vera Ione Scholz Rodrigues, relata que essa recusa muitas vezes ocorre de forma velada, quando as escolas, públicas ou privadas, alegam estar despreparadas para receber o aluno especial.

— Os pais ainda enfrentam bastante dificuldade para matricular os filhos. As escolas às vezes não negam, mas dizem: “Aqui não é o melhor lugar, não estamos preparados”. E aí, como você vai colocar seu filho num lugar assim? Melhor procurar outro, às vezes longe de casa — conta Vera.

Foi o que fizeram Rosangela e Rubens. Mesmo sabendo que tinham o direito de lutar na Justiça por uma vaga para Tarso em qualquer estabelecimento, preferiram procurar um que o acolhesse.

— Não quero obrigar a escola a aceitá-lo porque um juiz determinou. Que tipo de atendimento ele teria? Poderia receber represálias ou ser deixado de lado. Preferi procurar uma escola que o aceitasse — disse a contadora.

Argumentos variados para não oferecer espaço

Decidida a trocar a escola de Educação Infantil onde o pequeno estudava por colégio no início de 2015, a mãe passou quase um ano tentando vagas em estabelecimentos que eram tidos como referência na inclusão, oito deles particulares e um público. Diz que recebeu apenas um não literal, de uma escola que afirmou não aceitar crianças com síndrome de down por ser especializada em autismo. De resto, ouviu argumentos como “já preenchemos todas as nossas vagas para inclusão”, “vamos colocar o nome dele na lista de espera” ou “entraremos em contato quando abrir uma vaga”.

— A escolinha alegou que não estava preparada para trabalhar o letramento com Tarso, que precisa ter uma simbologia antes de conhecer as letras, então decidimos buscar um colégio. Os que eu contatei diziam que tinham vagas, mas era falar que ele tinha síndrome de down que mudavam o discurso — comenta Rosangela.

Tarso irá para um colégio este ano.  Foto: Júlio Cordeiro, Agência RBS

O ano estava quase acabando, e os pais entrando em desespero, quando o telefone da contadora tocou:

— Tivemos uma reunião e decidimos aceitar o Tarso — informaram do Colégio La Salle Santo Antônio, de Porto Alegre.

A notícia funcionou como uma dose de calmante para Rosangela: era o fim da peregrinação. A diretora do estabelecimento havia sido procurada pela família no início do ano, pois um dos irmãos mais velhos de Tarso, Félix, 18 anos, tinha estudado no local.

— Acho que o fato do Félix ter sido um bom aluno abriu as portas para o Tarso — relatou.

Problema da taxa extra também foi rediscutido

Outro problema enfrentado pelos pais de crianças e adolescentes com deficiência é que as escolas particulares às vezes cobram uma mensalidade maior para atender seus filhos. A vice-presidente do Instituto Autismo & Vida, Cláudia Meyer, conta que ouviu vários relatos de pais de autistas que pagam desde uma taxa mensal extra até salário integral de um monitor.

— Algumas escolas cobram pelo “reforço”, o que também pode ser uma maquiagem para a taxa extra. Nessa questão financeira, fica concreta a exclusão e a discriminação, mas isso é só um aspecto. A escola pode não cobrar a mais e deixar o aluno de lado, por isso muitos pais acabam pagando extras — completa Cláudia.

Conforme a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também chamada de Estatuto das Pessoas com Deficiência, passa a ser crime punível com multa e reclusão de dois a cinco anos “recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão da sua deficiência”.

Especialista em Educação Especial pela Unisinos, Renata Porcher Scherer afirma que o estatuto veio para reafirmar garantias de acesso ao ensino a pessoas com deficiência, o que pode contribuir para uma escola mais acolhedora. Mestre e doutoranda em Educação, a pesquisadora também interpreta como um avanço o maior rigor na proibição da negativa da matrícula e da cobrança de taxa extra.

— É bastante dolorido ir matricular o seu filho e ouvir “aqui não é o melhor lugar” — concluiu.

Escolas alegam despreparo, mas inclusão está prevista há 26 anos

As matrículas de alunos com deficiência no sistema regular do ensino estão previstas desde 1989, na lei da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência — hoje não se fala mais em “portador”, mas em “pessoas com deficiência”. A inclusão foi reforçada em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que determinou a criação de serviços de apoio especializado na escola regular para atender os alunos especiais e a contratação de “professores capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns”. Mesmo tanto tempo depois, algumas escolas seguem apontando despreparo institucional e dos educadores.

— Todo mundo deveria ser incluído em todos os espaços, principalmente na escola, que é um espaço de conscientização. Mas há o discurso da falta de capacitação. Professores dizem que não estudaram as deficiências na faculdade, não tiveram preparo de como lidar com esses alunos. Essa formação deveria ser discutida nos currículos das licenciaturas — afirmou Cláudia Meyer, vice-presidente do Instituto Autismo & Vida.

Coordenador da Coordenadoria de Políticas para Pessoas com Deficiência da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do governo do Estado, Adilso Corlassoli afirma que a escola é o estabelecimento que deveria dar o exemplo da inclusão à sociedade:

— Sempre tem o discurso das escolas de que “isso é muito novo”, mas já se passaram mais de 20 anos.

Renata Porcher Scherer, especialista em Educação Especial, afirma que a formação do professor precisa contemplar o entender da inclusão. Segundo a pesquisadora, é preciso partir do princípio de que todos podem aprender e planejar as aulas contemplando a forma de aprendizado de cada aluno.

Particulares entram na Justiça contra a lei

A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto do último ano, uma Ação de Inconstitucionalidade, com pedido de liminar, contra dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sancionado em julho. A entidade se manifestou contra o artigo que prevê obrigações às instituições particulares no atendimento a qualquer pessoa com deficiência, sendo veda a cobrança de valores adicionais. “As exigências realizadas tornarão os valores necessários ao custeio na educação privada proibitivos, e dessa forma, comprometendo a existência da escola privada”, explicou a confederação.

Na visão de Corlassoli, a ação é perversa e coloca pais de alunos com deficiência contra pais de alunos sem deficiência, já que o custo com a inclusão teria de ser repartido com todos. Em novembro, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu medida cautelar, alegando que “tais requisitos (inclusão das pessoas com deficiência, por mandamento constitucional) aplicam-se a todos os agentes econômicos”. O mérito da ação, no entanto, ainda não foi julgado.

No Rio Grande do Sul, o Sindicato do Ensino Privado (Sinepe) afirmou que não concorda com a ação da Confenen, entidade da qual não é filiado. O presidente do órgão, Bruno Eizerik, afirmou que o processo “se preocupa mais com efeitos econômicos e que a escola gaúcha é inclusiva em sua natureza”.

Sobre os colégios relatarem aos pais que não há mais vagas ou que estão despreparadas, o presidente informou que o sindicato apoia a “inclusão possível”, para aqueles alunos a quem os estabelecimentos têm condições de atender, em contraponto à “inclusão universal”, proposta pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

— Essa questão da universalidade, em que todos atendem tudo ao mesmo tempo, não tem como funcionar. Nossa linha de entendimento e trabalhar com uma inclusão responsável, pois há alguns alunos que necessitam de escolas especiais. Além disso, há uma norma do Conselho Estadual de Educação que determina número de alunos de inclusão em sala de aula — argumenta Eizerik.

Sobre a cobrança das taxas extras, o presidente informa que a prática é proibida e o sindicato nem discute mais o assunto. Mas acrescenta que isso faz com que o custo da inclusão seja dividido entre todas as mensalidades.

CONTRAPONTOS

O que diz a Secretaria de Educação de Porto Alegre
“O ingresso de alunos na Rede Municipal de Ensino é garantido à todo aquele que buscar vaga. Somos reconhecidos como uma rede inclusiva, que oferece aos alunos com necessidades educacionais especiais, entre outras coisas, estimulação precoce e psicopedagogia inicial, para a Educação Infantil, e Salas de Integração e Recursos, para o Ensino Fundamental. Estes atendimentos são feitos por professores especializados em Educação Especial e aptos a atender diferentes deficiências e transtornos globais de desenvolvimento, bem como apoiar professores e serviços das escolas onde os alunos estão matriculados. Temos o histórico de receber alunos oriundos de outras redes, onde lhes foi negada vaga”.

O que diz a Secretaria Estadual da Educação
“A Secretaria Estadual da Educação ressalta que a oferta do ensino público é para todos e, por isso, oferece, no ensino regular, o atendimento educacional em Salas de Recursos para alunos com deficiências. Atualmente, são 1.037 Salas de Recursos para atender estudantes com deficiência auditiva, visual, intelectual, física, múltipla, autismo e altas habilidades/superdotação. Em 2015, mais de 24 mil alunos estudaram em classes regulares da rede estadual de ensino. Segundo o diretor-adjunto do Departamento Pedagógico da Seduc, José Adilson Antunes, a capacitação e formação continuada dos professores é permanente, uma vez que o objetivo principal é qualificar os espaços de atendimento, eliminando as barreiras no processo de aprendizagem”.

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