Papo de Mãe

Um Abraço no Chefão

Roberta Manreza Publicado em 18/09/2016, às 00h00 - Atualizado às 10h20

Imagem Um Abraço no Chefão
18 de setembro de 2016


Por Luis Cosme Pinto*

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A cabeceira, lugar de quem paga a conta e comanda a conversa, sempre foi dele. Agora mais ainda com a autoridade da cabeleira branca, farta como nuvem de algodão.

Em torno dele a família toda. É a festa dos 83 fevereiros.

O verão carioca sufocava, mas ninguém foi à praia, estavam todos lá, na mesa de vinte e um lugares.

O homenageado era meu pai, o Edgar Pinto. Netos e netas, filhos e noras… a família reunida em torno do homem da nossa vida ou como diz um sobrinho querido, o Chefão!

Meu pai sempre adorou o apelido, mas não ria. Riu pouco na vida e andava rindo menos.

O Chefão só mostrava os dentes quando queria.

Naquele domingo riu pelo ano inteiro, estava feliz com a companhia, as brincadeiras e o carinho de todos.

Depois do bolo, os beijos.

Depois dos beijos, as fotos.

E depois das fotos, o susto.

Saímos da mesa todos juntos, crianças e adolescentes na frente, minha mãe devagarinho de braço dado com uma acompanhante.

Meu pai seguia atrás, perto dos meus irmãos e das noras. Eu sou o último do grupo, só por isso consigo enxergar o que vai acontecer em alguns fragmentos de segundo:

Meu pai vira o corpo para ver um dos netos, as pernas desobedecem não saem do lugar, ele perde o equilíbrio e desaba, com tudo.

O homem de 83 anos, com a cabeleira branca quase esvoaçante, óculos escorregando pelo nariz está em queda livre. Os braços buscam de um apoio inexistente e é fácil prever o que vai acontecer: pelo menos uma fratura, os óculos quebrados, a festa destruída.

Ele está cada vez mais perto do piso duro e gelado. Ninguém vê, ninguém pode fazer nada, exceto eu que vejo e consigo ser mais rápido que o instante.

Tenho na mão direita um celular e um rádio Nextel, na esquerda minha carteira e as chaves, já meus braços estão livres.

É só o que tenho para impedir o pior e são eles que se encaixam nos sovacos de meu pai.

Faltava menos de um metro para o desastre que não aconteceu.

Não sei como, mas me abaixei a tempo de somente com os braços, acolher o corpo em queda. Pronto, ele está salvo.

Consigo sustentar o peso, que não é pouco, ainda sem saber como encontrei força e rapidez.

Revejo a cena, agora em câmera lenta.

Minha família toda se virando, todos surpresos com o tombo que não se consumou.

Lá trás, em segundo plano, garçons com suas bandejas, comilões com o garfo a caminho da boca, chopps suspensos, todos congelados pelo susto.

Ainda paralisado, viajo na memória.

Penso nas tantas vezes que ele me pegou no colo, me levantou do chão, me protegeu, me abraçou. Lembro de abraços apertados, outros formais, seguidos de um beijo no rosto.

Esse foi o homem que beijei a vida toda, beijei e continuava abraçando, ali na saída do restaurante. Sutil, ele se afastou, deu um sorriso. Mais um.

Caminhamos lado a lado, ele com a mão em meu ombro.

Sempre gostei de andar assim com meu pai.

A mesma mão dele, a canhota, o mesmo ombro meu, o esquerdo, que se encontraram tantas vezes.

Gostava porque sabia que era o jeito contido do meu pai dizer que estava do meu lado.

Foi assim numa caminhada na Avenida Atlântica, Copacabana, 1981. Eu com vinte, ele com cinquenta e três.

Ele feliz, finalmente um filho seguia o sonho frustrado dele de ser engenheiro civil, seria então o caçula o construtor de pontes, casas e prédios?

Eu angustiado, querendo me jogar naquele mar e nadar até a África.

Tinha pedido aquele passeio para revelar que estava infeliz e ia abandonar a faculdade.

Falei com a garganta apertada que preferia o Jornalismo.

Foram alguns minutos de silêncio, ele botou a mão no meu ombro – canhota com esquerdo – e disse: estude e passe no vestibular, ou então vá trabalhar.

Fiz os dois – comecei a cursar jornalismo, entrei numa rádio – e ganhei o maior incentivador que alguém poderia ter.

Realizei meu projeto e ele também, afinal o que queria era me ver feliz. Nada mais.

Não consigo evitar novas recordações, essas ainda mais distantes.

Meu pai forte, numa véspera de Natal, pede que eu e meus dois irmãos esperemos no banco de trás de uma Vemaguetti.

Ele atravessa a rua, enfrenta uma chuva grossa de verão, desafia os carros e traz um embrulho enorme equilibrado na cabeça. Um Autorama!

Um presente que nunca esquecemos.

A imagem mais forte, porém, é a do herói com a roupa e cabelos molhados, equilibrando o pacotão encharcado e o cigarro Minister incrivelmente aceso e seco no canto da boca!

A brasa viva, vermelha. Nunca esqueci!

Entre o temporal em Copacabana e o domingo de sol na Barra, 50 anos.

Foi o último aniversário do meu pai e um de nossos últimos abraços.

*Luis Cosme Pinto é jornalista, autor do Livro de Crônicas Ponte Aérea.

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