Papo de Mãe

Abrir brinquedos no Youtube vira febre e inflama debate sobre consumismo infantil

Roberta Manreza Publicado em 13/04/2016, às 00h00 - Atualizado às 17h05

Imagem Abrir brinquedos no Youtube vira febre e inflama debate sobre consumismo infantil
13 de abril de 2016


Vídeos no Youtube em que se abrem embalagens de brinquedos atraem udiência mirim, inflamando debate sobre consumismo infantil. Reprodução.

Bastante popular nos Estados Unidos, um fenômeno no YouTube chamado unboxing – algo como “abrir caixas” – vem ganhando mais e mais fãs entre as crianças brasileiras. São vídeos de meninos e meninas (e às vezes adultos) desembrulhando brinquedos e chocolates. Eu descobri recentemente a nova moda e o que está por trás desse fascínio infantil por acaso, e confesso que me surpreendi com o que achei.

Há alguns meses, meus filhos estavam assistindo a vídeos no YouTube e ouvi uma voz estranha saindo do tablet. De repente, a Peppa Pig parou de conversar e de grunhir, e surgiu uma menina falando inglês. Meus ouvidos agradeceram, mas fui ver do que se tratava. Era uma garota de cerca de 7 anos abrindo caixas com mini personagens do famoso desenho animado, a Peppa, George e Papai e Mamãe Pig.

Intrigada com o fascínio dos meus dois filhos (de 7 e 4 anos) por uma garota abrindo caixas, pacotinhos e ovos de plástico com brinquedinhos dentro, pesquisei e descobri que esse tipo de vídeo é chamado de unboxing. E também fiquei sabendo que por trás desses vídeos há algumas pesquisas, muitas dúvidas e polêmicas envolvendo youtubers mirins, pais, advogados e especialistas em internet. Veja as principais delas:

De onde surgiu o unboxing?

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Esses vídeos começaram a ganhar força, nos Estados Unidos, a partir de 2006 com produtos de tecnologia. “Eles faziam uma avaliação técnica de produtos, especialmente celulares, respondendo perguntas como: esse aparelho é bom? Como é a bateria dele? Quais funções ele tem? Devo comprar?”, explica Paulo Silvestre, palestrante de mídias sociais e professor do mesmo assunto nas faculdades Mackenzie e PUC. Por volta de 2011, o unboxing ganhou o mundo infantil. “E as crianças se apropriaram desse conceito, fazendo seus próprios vídeos, com brinquedos”, diz.

Quem assiste?

Image copyright Reprodução.

Nos Estados Unidos, há canais com unboxing que já somam bilhões de views, como o FunToyzCollector (antes chamado DisneyCollectorBR), e que tem 10 bilhões de vizualizações e 6,8 milhões de seguidores – e é o mais visto nos EUA. https://www.youtube.com/watch?v=aoc8d0gcf08

Seu vídeo recorde, com 107 milhões de views, mostra ovos de plástico com brinquedos de Angry Birds, Bob Esponja e Cars. No vídeo, se vê apenas uma mão abrindo as embalagens – uma mão que seria de uma brasileira. No segundo canal mais visto, o Blu Toys Surprise Brinquedos & Juegos, com 5 milhões de vizualizações, há vídeos gravados em português.

Segundo a pesquisadora da faculdade ESPM em São Paulo Luciana Corrêa, o fenômeno do unboxing (e das historinhas com personagens quase sempre atreladas a ele) vem crescendo entre as crianças brasileiras.

“Como temos o maior consumo de rede social em algumas faixas etárias, como por exemplo entre 9 e 10 anos, é provável que os números desse tipo de vídeo ultrapassem os números nos EUA logo”, diz Luciana.

Em seu estudo, Geração Youtube: Um Mapeamento sobre o consumo e a produção de vídeos por crianças, ela identificou que entre os 100 canais de maior audiência no YouTube no Brasil, 36 são direcionados para crianças

Um levantamento feito online por Luciana com 776 pais e mães também detalhou ao que cada faixa etária está assistindo. “Me surpreendi em ver como os vídeos de abrir brinquedo começaram ganhar audiência entre crianças de 0 a 2 anos, especialmente de dezembro do ano passado para cá.” Entre os dez canais mais assistidos por esses bebês/crianças, quatro mostram unboxing.

Por que crianças ficam fascinadas com o unboxing?

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O professor Paulo compara o unboxing de produtos de tecnologia com o feito por e para crianças: “Qual a avaliação técnica a ser feita abrindo um ovinho de chocolate? O fascínio aqui é pelo que tem dentro. Esses brinquedos (Kinder Ovo e pacotes unitários, semelhantes aos de figurinha, com personagens como Polly e Pokémon) têm milhares de modelos e raramente uma criança tem todos. Então, elas querem ver os que elas não têm.”

O professor afirma ainda que, enquanto youtubers de tecnologia fazem pesquisas online para ver os termos mais buscados, as crianças fazem isso naturalmente, na escola, entre os amigos. Assim, acabam falando de brinquedos que estão muito na moda em suas faixas etárias, gerando um grande interesse das crianças que assistem.

Para os mais velhos, que já passaram dos 30 faz tempo e não conseguem entender o fenômeno, ele dá um exemplo: “Imagine se no auge das canetas de 10 cores ou dos estojos tipo robô Transformers, você não tivesse nenhum deles. Também gostaria de ver vídeos mostrando como eles funcionavam, não?”

Em seu livro A Lógica do Consumo, o pesquisador dinamarquês Martin Lindstrom também relaciona o unboxing aos chamados neurônios-espelhos, um neurônio que é ativado ao ver alguém fazendo algo da mesma forma que seria se a pessoa efetivamente estivesse fazendo essa tarefa. Ou seja, um fanático por tecnologia fica tão feliz ao ver um vídeo com alguém abrindo um iPhone recém-lançado como se ele mesmo estivesse com o produto em mãos.

Para Eduardo Brandini, Diretor de Conteúdo do YouTube Brasil, “se os vídeos deunboxing fazem sucesso, isso se deve ao interesse de uma audiência nesse formato”.

“Se uma pessoa busca por conteúdo de unboxing, este conteúdo passará a ser relevante para ela”, disse Eduardo à BBC Brasil.

Luciana, da ESPM, ressalta que muitas crianças veem no unboxing uma brincadeira entre pares e que esse é um aspecto positivo.

O que diz uma Youtuber mirim (e o pai dela)

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Julia Silva, de 10 anos, dona do canal do Youtube de mesmo nome, no ar há 4 anos: “Comecei a ver esses vídeos de unboxing (americanos) quando a gente estava na França e eu não entendia nada na TV. O mais legal é que eu podia ver os brinquedos que eram novidades. Também acho muito bom que as crianças podem soltar seus sentimentos nos vídeos. Eu mesmo que faço as historinhas dos meus vídeos, invento sozinha ou com as minhas amigas. Só faço vídeo com os brinquedos que eu gosto. Gravo por uma hora ou uma hora e pouca no fim de semana, porque de dia de semana eu estudo. Às vezes, quando eu estou cansada ou quero fazer outra coisa, não gravo nada. Antes eu tinha vergonha e me espantava quando me reconheciam. Hoje, acho o máximo. Eu já encontrei alguns dos meus seguidores e foi bem legal.”

Dreyfus Silva, pai de Julia: “Minha filha só fala dos brinquedos de que gosta, e, se decide falar de algo que ganhou, ela avisa que foi enviado pela empresa x, sempre bem transparente. Hoje, a Julia faz pouco unboxing, faz mais a historinha com bonecas, por exemplo. Mas a grande maioria do que ela mostra, cerca de 80%, sou em quem compra. Se isso incentiva o consumismo? Talvez. Mas o importante é que o consumo tem que ser regulado pelos pais. São eles quem têm de regular o que os filhos consomem, seja em termos de brinquedo ou de chocolate. Eles têm que explicar e dizer não.”

Esses canais incentivam o consumismo?

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“Os vídeos de unboxing são uma forma clara de publicidade dirigida a crianças e incentivam o consumismo infantil. É uma mensagem persuasiva que enaltece o consumo daqueles brinquedos como uma forma de felicidade. E fica ainda mais persuasiva quando é feita por outra criança”, afirma Guilherme Perisse, advogado do Projeto Prioridade Absoluta, do Instituto Alana.

Segundo ele, é preciso ter em mente que muitos produtos são enviados pelas empresas fabricantes e que nesses casos os anunciantes estão fazendo uma publicidade disfarçada, fazendo com que fique a impressão de que é apenas um conteúdo produzido para entreter.

“E é um agravante o fato de ser uma propaganda disfarçada, já que muitas vezes nem as crianças nem os pais percebem que se trata de uma anúncio.” Para Guilherme, esses vídeos ferem o artigo 37 do Código do Consumidor, que fala que a publicidade é abusiva quando se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, e o artigo 36, que diz que a publicidade deve ser veiculada de forma a permitir a fácil e imediata identificação.

O professor da PUC, Paulo Silvestre, concorda: “Acaba sendo uma publicidade eficiente para o brinquedo em questão, mesmo se esse não era o objetivo de quem está fazendo o vídeo – e normalmente não é mesmo.” No entanto, segundo ele, se você tirar o fator YouTube, é só uma criança mostrando para os amigos seu brinquedo novo. “Mas com milhares de visualizações, esses vídeos podem ser encarados como publicitários, sim, e geram preocupações.”

“Então, por um lado, temos os vídeos espontâneos, e seria inadequado filtrá-los. E aí é preciso tomar cuidado para não crucificar inocentes, ou seja, quem está gravando esses vídeos legítimos.” O outro lado da moeda, segundo Paulo, são vídeos com brinquedos enviados por empresas. “Como separar um do outro? No momento, é complicado.”

Para Luciana, da ESPM, a mensagem é sutil. “Não dá para identificar facilmente o que é propaganda e o que não é.”

Dreyfus, pai da youtuber mirim Julia Silva é taxativo. “Talvez incentive o consumo, mas o importante é que o consumo tem que ser regulado pelos pais. São eles quem têm de regular o que os filhos consomem, seja em termos de brinquedo ou de chocolate. Eles têm que explicar e dizer não”, explica. “Vídeos de unboxing não são propagandas. O objetivo é ter audiência, não é fazer publicidade. No canal da Julia, sou em quem compro 80% dos brinquedos, que servem de material para diversos vídeos. Os 20% são produtos que ela ganha e mostra se ela gostar – sempre dizendo, de forma transparente, que foi enviado pela empresa tal.”

O que dizem as empresas

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A Mattel, fabricante de brinquedos como Hot Wheels e Polly, não respondeu se envia brinquedos para crianças que têm canais no Youtube. Disse que “é natural que vídeos espontâneos feitos com brinquedos da Mattel estejam disponíveis no Youtube”.

A Ferrero, que produz o Kinder Ovo, também não deixou claro se envia os produtos como brindes para youtubers mirins, afirmando apenas que “direciona suas comunicações aos pais e mães de crianças”.

Já a Copag, responsável pelos colecionáveis cards Pokémon, disse que envia produtos quando os youtubers ou seus pais entram em contato pedindo produtos para fazerem resenhas. Fabricante da massinha Play-doh, a Hasbro não respondeu.

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