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Doulas de adoção: o que são?

A psicóloga Mayra Aiello e a educadora e doula, Mari Muradas, contam o que é o "Doulas de Adoção Brasil Instituto" e qual a sua atuação

Maria Cunha* Publicado em 16/06/2021, às 18h01

O Doulas de Adoção Brasil Instituto é focado na inovação de conectar a atuação da doula, nos moldes do Brasil, com o cenário e o modelo da adoção brasileira. - Arquivo de Mari Muradas
O Doulas de Adoção Brasil Instituto é focado na inovação de conectar a atuação da doula, nos moldes do Brasil, com o cenário e o modelo da adoção brasileira. - Arquivo de Mari Muradas

Como tudo começou

Mari Muradas é educadora, doula de parto e de adoção, e filha via adoção. Ela foi adotada com cinco dias de vida, em 1988 e, ao longo de sua trajetória como doula, morando na Califórnia, se tornou doula de adoção. Quando voltou ao Brasil, ela e a psicóloga Mayra Aiello, se conectaram. A doula é uma espécie de assistente da grávida, que pode acompanhá-la antes, durante e no pós parto (saiba mais abaixo).

O encontro das duas ocorreu por causa da filha de Mayra. A psicóloga, que já atuava no Brasil formando doulas em um espaço de maternidade humanizado, teve seu caminho moldado por sua vivência pessoal como mãe de adoção, o que a fez estudar o campo da adoção dentro da psicologia e entrar em contato com Mari para ser sua doula.

“Eu falei: por que não? Eu quero ter uma doula de adoção para acompanhar minha jornada, meu filho não vai chegar em um parto humanizado, mas pode chegar acompanhada de uma doula”, relata Mayra Aiello.

Surgiu, assim, em 2018, um trabalho pioneiro no Brasil: a criação do Doulas de Adoção Brasil Instituto, com moldes diferentes da atuação que Mari Muradas fazia nos Estados Unidos e focado na inovação de conectar a atuação da doula, nos moldes do Brasil, com o cenário e o modelo da adoção brasileira.

No meio desse processo, a filha de Mayra chegou e ela contou que, para ela, principalmente no puerpério, ficou mais nítido o quanto é válido, importante e necessário, o trabalho da doula para as famílias.

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A doula

Mari Muradas explica que a doula é uma profissional capacitada na escuta, na validação e no apoio emocional em momentos de transição da vida. Existe a doula de gestação e parto, a doula de pós-parto, a doula de adoção e a doula do fim da vida, que auxilia famílias e pacientes nos processos de medidas paliativas.

“Quando a Mayra me procurou, fez todo sentido. Primeiro nessa validação emocional do que ela estava vivenciando, existe o puerpério na adoção, o que você está sentindo agora é puerpério. Essa mudança, o ato de cuidar de um outro ser, faz com que a gente tenha alterações hormonais e que coloque tanto a mãe quanto o pai nesse processo de puerpério, que é um período de adaptação”.

A educadora e doula, de parto e de adoção, explica que só o fato de nomear o puerpério na adoção já faz com que o processo seja completamente diferente de um processo solitário.

“A maternidade acaba se tornando algo muito solitário no puerpério, a mãe está se descobrindo uma nova pessoa, está com muitas alterações na rotina, muitas pessoas chegam e não são os palpites que você gostaria de ouvir, não te validam, te deixam mais insegura e na adoção isso acaba sendo ainda mais solitário, porque as pessoas ainda têm esse imagético de falas muito preconceituosas ao redor da adoção”, conta a educadora e doula.

De acordo com Mari Muradas, a adoção, principalmente no Brasil, ainda está cercada de muitos tabus e preconceitos, o que é percebido no acompanhamento que ela e Mayra fazem.

“Os pretendentes vão pra duas categorias: os corajosos ou os completamente loucos. Ninguém está nesse lugar de: ‘vai ser assim!’, validando essa parentalidade como qualquer outra via. A criança só chega na família via adoção, é a via de nascimento daquela parentalidade, aquela família já existe bem antes daquela criança existir. A gente não entra nesse lugar de completude, é transbordamento, são seres completos se encontrando e se vinculando, construindo esse laço”.

A doula de adoção

De acordo com Mari Muradas, a doula de adoção faz um processo tanto de curadoria de informações, quanto de apoio emocional. Com isso, a doula está presente para amparar e fomentar perguntas e reflexões, para que a pessoa se sinta confortável e vá em busca das suas próprias respostas, que fazem sentido para si.

“Ser pai e mãe não é receita de bolo, não existe fórmula mágica. A gente está em um momento do mundo que é muito rico de informações, mas é muito importante que as pessoas reconheçam em si suas potencialidades e filtrem essas informações, o que faz sentido para para elas, para que elas se sintam seguras na suas escolhas e conscientes".

Nesse contexto, Mari explica que a doula de adoção faz o papel de apoio em qualquer etapa do processo de adoção, seja uma pessoa que deseja adotar e não sabe por onde começar ou uma pessoa que já deu entrada na Vara da Infância e Juventude, já está habilitada e deseja tornar esse processo uma espera ativa, potente de informações e reflexões, tanto no puerpério, que é o processo de pós-adoção, como com adultos que foram adotados. As doulas de adoção também auxiliam a lidar com as características e particularidades da adoção com acolhimento e apoio emocional.

É importante dizer que esse trabalho acontece com a composiçãode uma equipe multiprofissional, em parceria com outros profissionais de ajuda, como psicólogos. A doula não substitui o papel de um profissional, a atuação profissional de um psicólogo da equipe técnica da Vara da Infância e da Juventude, por exemplo, formada por psicólogos, assistente sociais. Além disso, o trabalho das doulas também não substitui o trabalho de grupos de apoio.

“Cada qual tem a sua função dentro desse campo como atores da adoção junto à família. Sempre o nosso foco, como doulas de adoção, são as crianças e adolescentes e o nosso foco é preparar essas famílias ou acolher essas famílias que estão vivenciando a parentalidade via adoção para que elas se tornem adultos que cuidam, pais melhores, profissionais melhores com mais informação e conhecimento pra pra atender, acolher e ajudar as famílias", explica a psicóloga Mayra Aiello. 

Todo esse trabalho é baseado em estudos da psicologia, da neurociência, da comunicação não violenta, da antropologia, da antroposofia, ou seja, estudos que permeiam o processo psicoemocional da formação e ampliação da família, da parentalidade, de traumas, do sistema emocional da criança e do dos adultos. Tudo que envolve os aspectos emocionais da parentalidade mais as evidências científicas. 

Mari Muradas completa ao dizer que também é papel das doulas de adoção, além do acompanhamento individual, também trazer reflexões para a sociedade. Por isso, são feitas parcerias com pediatras, escolas e empresas, pra que a seja possível entender e levar informação sobre a adoção, quebrando tabus e preconceitos.

"Quando a gente fala de adoção no Brasil, a gente tem que entender que a gente está atuando só com adoções legais, seguras e para sempre, via ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que é o papel da adoção moderna. A gente está no papel de garantir famílias para essas crianças e não na ideia da adoção clássica, que era garantir filhos para pais. Como que a gente prepara essas pessoas e prepara essa sociedade pra que acolha essa criança nas suas potências? A gente fala que é muito isso, é importante transformar o filtro que a gente enxerga a adoção nas suas potências, porque são muitas", conta a educadora e doula de parto e de adoção. 

A educadora e doula ainda pontua que são muitas histórias positivas de ressignificação, de acolhimento, de construção de vínculo e de respeito desde sempre, desde a família de origem à particularidade da criança.

"Esse processo de vinculação que vai acontecendo dia a dia, inerente da parentalidade, um filho biológico, a gente também, a gente vai se vinculando ao longo dos dias, dos cuidados, a gente não se vincula instantaneamente, não ama profundamente, instantaneamente, é uma construção”.

Mayra Aiello reforça que, infelizmente, ainda existem muitos preconceitos e tabus em relação à adoção, então o trabalho das “Doulas de adoção” também tem esse objetivo de fazer a desmistificação, dissolver preconceitos e tabus em relação à adoção, como rótulo, como incapacitante em relação às potências, ao desenvolvimento das crianças, ao relacionamento familiar e ao desenvolvimento dessa criança enquanto adulto, enquanto ser humano, em todas suas potencialidades.

“A gente percebe que quanto mais a gente fala sobre isso, em espaços diversos, e não só com famílias que vivenciam a adoção, mas com todas as famílias que vão conviver com essas famílias. Então, que a gente possa diminuir esses tabus e trazer a adoção como uma característica dessa família, da criança que chegou, e fazer esse entrelaçamento das histórias de uma forma saudável e positiva”.

Como ter uma doula de adoção?

A psicóloga ainda explica que se alguém deseja ter uma ter uma doula de adoção, o primeiro passo é a pessoa preencher um cadastro em que ela coloca algumas informações sobre em que momento ela está em relação à adoção, quais são as questões que ela quer trabalhar com uma doula e se ela está realizando a adoção pela Vara da Infância e da Juventude, já que só são atendidas famílias que vão realizar ou estão realizando adoção por esse meio, pelo Sistema Nacional de Adoção. Por isso, também é pedida a comarca que a família está cadastrado ou está habilitando. Depois disso, a família é indicada para a rede de doulas formada por Mari e Mayra.

“Além de nós duas como idealizadoras, fundadoras e atuantes no instituto, nós temos doulas que a gente forma, doulas espalhadas em alguns estados do Brasil, que participam do nosso curso de formação. A gente indica pra essa rede de doulas que, por conta da pandemia, os atendimentos estão sendo todos on-line, então isso facilita com que a gente consiga conectar as famílias interessadas em ter uma doula com as doulas certificadas por nós".

Com isso, é feito um "match", uma conexão, em que a Mari Muradas e Mayra Aiello conhecem um pouco da história das famílias e, sabendo as especificidades das doulas, conectam as profissionais com os pais.

"A gente fala que é o Tinder da doula de adoção, a gente conecta histórias que vão poder trabalhar juntas de uma forma potente, porque a gente entende que a doula tem esse caráter de proximidade, de desenvolver uma conexão, e assim, essa doula vai realizar o atendimento”, explica Mayra Aiello.

Mayra conta que os atendimentos são individuais com a família e podem ser encontros semanais, quinzenais ou mensais, de acordo com combinado entre a família e doula, com base na necessidade, às vezes é mais intenso e às vezes é mais espaçado. Já pagamento das doulas é via uma contribuição espontânea, uma contribuição consciente, pois o pagamento feito pela família será devido à um equilíbrio do dar e receber entre ela e a doula.

Além disso, Mayra e Mari Muradas também têm um projeto social, em que realizam o atendimento às famílias que, por alguma questão, não têm condições financeiras de arcar com custo de uma doula. Assim, as idealizadoras do “Doulas de Adoção” no Brasil, indicam e conectam as famílias sem condições de pagar com as doulas do projeto que ainda estão se formando, como parte do estágio da formação de doulas.

“A gente tem esses dois braços: o do atendimento particular e o do atendimento social. A gente sempre atende à todos, todas as pessoas são contempladas pra ter um atendimento de uma doula ao longo desse processo que não tem um tempo, então essa doula é uma pessoa que vai estar acompanhando a família ao longo da sua jornada. Algumas pessoas já procuram no início, que a gente acha que é muito válido, e a doula de adoção vai acompanhando ao longo desse processo”.

"Fomos adotados"

Além disso, Mari Muradas relata que elas também possuem um espaço, uma comunidade, chamada “Fomos adotados” em que são trazidas narrativas e perspectivas de filhos que foram adotados, adultos que foram adotados. O projeto acontece via áudios compartilhados pelo HotMart nessa comunidade, em que serão mostradostanto os estudos relacionados às pessoas que foram adotadas, quanto quais são as principais questões pra que essas pessoas encontrem o seu espaço de pertencimento. A cada episódio, um profissional é chamado pra comentar e trazer a sua perspectiva sobre determinada questão que foi abordada na narrativa única, exclusiva e individual contada.

“Tem sido um trabalho de acolher as pessoas que, muitas vezes, não tiveram acolhimento ao longo do seu processo de adoção para que elas se reconheçam e que a gente consiga também levar essas informações para outras famílias lidarem com maior potência e acolhimento com seus filhos”.

Para Mayra Aeillo, essa cumplicidade é uma grande característica do projeto: a união de Mari, com a vivência de filha adotiva, com Mayra, que tem a vivência enquanto mãe, ambas unindo os saberes científicos da atuação profissional e os estudos e aprofundamentos em relação à vivência da adoção.

O “Fomos Adotados” é um projeto aberto e pais, profissionais e famílias, em qualquer etapa do processo de adoção podem participar.

A gente acredita que a gente precisa ouvir o que os filhos têm a dizer, ouvir as suas experiências, ouvir a suas dores, ouvir a suas felicidades, ouvir as suas questões e, assim, a gente vai estar abrangendo essa visão sistêmica em relação à adoção. Que a gente cada vez mais dê voz aos filhos, às famílias de origem e às famílias via adoção.

Mari Muradas completa ao lembrar que, quando ela e Mayra começaram o projeto, sempre foi um dos maiores objetivos entrar em todos os espaços da sociedade, falando sobre adoção nas suas potências.

“A escola, pra quem foi adotado como eu, é sempre um lugar muito sensível, é sempre um lugar onde em um momento, ao longo da vida, rola um deslize de um exercício, de uma atividade de dia das mães que pergunta da gestação, rola isso até hoje, 2021”, conta Mari Muradas.

A psicóloga Mayra Aiello também expõe o lado dos pais, pois atividades como essa “dão muito medo". "A gente fala: o que será que vai vir no mês do dia das mães? Será que eles vão pedir uma foto da barriga ou pra contar como foi história do nascimento? Como que isso vai ser pra criança?”

Mari Muradas conclui ao dizer que quando rotulamos a criança como “o amigo adotivo de fulano”, a colocamos em um lugar de vítima, de fragilidade e de uma microviolência que essa criança acaba sofrendo, o que deve ser mudado.

Mayra Aiello finaliza ao dizer que “poder também dar voz e lugar para a parentalidade adotiva é muito significativo”.

Assista à entrevista completa com Mari Muradas e Mayra Aiello

#DicadoPapo

Mari Muradas também é autora de um livro infantil sobre adoção chamado “Filho é filho”. Confira o vídeo de Mari sobre a obra!

*Maria Cunha é repórter do Papo de Mãe

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