A literatura como vacina. A importância de se cultivar leitores desde a primeira infância

Roberta Manreza Publicado em 22/08/2017, às 00h00 - Atualizado em 07/12/2020, às 17h22

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22 de agosto de 2017


Por Dante Gallian*, Dante Gallian, doutor em História pela USP, professor da Escola Paulista de Medicina e coordenador do Laboratório de Leitura da Casa Arca

Para pessoas de uma certa geração (como a minha) que nasceram numa época em que ainda não havia computadores em casa (e muito menos internet) e que telefone era um objeto grande e pesado que ficava em cima de uma mesa ou pendurado na parede da cozinha, observar a familiaridade e facilidade com que, hoje em dia, uma criança de pouco mais de nove meses mexe num tablet ou smartphone provoca, inevitavelmente, uma sensação de espanto. É cada vez mais comum constatar e ouvir comentários de como as crianças de hoje são mais espertas, com uma habilidade para lidar com a tecnologia eletrônica que parece vir da vida intrauterina. Entretanto, muitas vezes, na expressão desse espanto pressente-se uma mescla de admiração e preocupação: Será isso bom? Quais as consequências disso para formação e a educação dessas crianças no futuro? Em sincronia com o fenômeno de aceleração do tempo histórico que marca nossa contemporaneidade, as crianças nascem e se tornam smarts muito mais rapidamente do que nas gerações passadas, porém, em contrapartida, emburrecem e se alienam também com muito mais velocidade.

São inegáveis os ganhos e benefícios que toda essa revolução tecnológica das últimas décadas tem trazido, principalmente no âmbito das novas possibilidades no campo da formação e educação das crianças. Entretanto, são inegáveis também as perdas e malefícios que já se observam em diversas dimensões da experiência humana como decorrência dessas aceleradas transformações. Uma dessas perdas mais preocupantes, acarretadora de grandes malefícios, é, sem dúvida, a do hábito da leitura.

Não é preciso ir muito longe na busca de referências científicas (cada vez mais abundantes) para constatar que o hábito de ler tem perdido força, na mesma proporção em que o hábito de operar gadgets tem ganhado; e que o tempo antes dedicado à leitura de livros (mesmo eletrônicos) tem sido investido cada vez mais na fruição de videogames e das redes sociais. Os efeitos dessa mudança têm preocupado pais e educadores, não apenas por aquilo que já se percebe no presente, mas também, e principalmente, pelo que se vislumbra no futuro.

Sobre os benefícios da leitura – da leitura de qualquer tipo de literatura, mas particularmente da ficção, das histórias – muito se tem escrito (paradoxalmente na mesma proporção em que o hábito em si decresce), ponderando-se quase sempre a sua relação direta com o desenvolvimento de certos padrões e capacidades intelectuais, como o pensamento reflexivo e crítico, assim como a ampliação da criatividade, empatia e sensibilidade. Em suma, cada vez fica mais evidente a significância que o hábito da leitura literária (para distinguir da leitura eminentemente técnica) desempenha no processo formativo e educativo das pessoas, influindo inclusive no âmbito da qualidade de vida e da própria felicidade. Como afirma Antoine Compagnon, em seu livro Literatura para quê?, o ser humano que lê se torna mais humano: é mais inteligente, criativo e feliz, porque compreende melhor a si mesmo, o outro, a vida… Portanto, a preocupação de muitos pais em incutir o hábito da leitura de livros em seus filhos é absolutamente procedente e justificável. Mas, como fazer e quando começar?

Comecemos pelo quando: antes deles nascerem. Tal como acontece com a quase totalidade dos hábitos e costumes que desenvolvemos, o hábito de ler começa a ser incorporado de forma quase natural se nascemos e crescemos num ambiente em que a leitura e os livros estão presentes de forma efetiva. Acho muito curioso certos pais que reclamam da falta de interesse de seus filhos pela leitura sendo que eles mesmos não cultivam esse hábito! Como podem cobrar que seus filhos leiam se estes raramente ou nunca os vêm com um livro em mãos? Será que precisamos de algum especialista para nos lembrar e confirmar cientificamente que toda educação começa pelo exemplo? O primeiro passo para educarmos nossos filhos como leitores é, portanto, sermos nós mesmos leitores. Mas leitores de verdade, realmente apaixonados pela leitura e pelos livros, pois se o simples gesto da leitura já é algo exemplar e educativo, a experiência intensa e apaixonada potencializa incomensuravelmente este gesto exemplar e o transforma em objeto de curiosidade e desejo. Assim, se quisermos que nossos filhos sejam grandes leitores devemos antes de qualquer coisa cultivar esse hábito, essa paixão em nós mesmos.

Isto, sem dúvida, é o fundamento, mas não o suficiente. Se somos autênticos leitores desejaremos, instintivamente, compartilhar este hábito e difundir essa cultura por onde quer que formos, começando na nossa própria casa, na própria família. Conheço alguns casos de pais que já liam para os filhos quando esses ainda estavam na barriga da mãe. Além de ser um ato de amor ao filho é também uma forma de já despertar neste o amor pela leitura antes mesmo de nascer.

O hábito de contar ou ler histórias para os filhos, principalmente na primeira infância, não apenas é um dos meios mais eficazes de cultivar neles o amor à leitura, mas é também um poderoso despertador da sensibilidade e da criatividade na criança, com efeitos benéficos incalculáveis para toda a vida. Nos tempos que correm, apesar da ampliação ilimitada de acesso à informação e ao conhecimento, vivemos, paradoxalmente, um perigoso estreitamento de nossa capacidade de percepção das diversas dimensões e patamares da realidade. Só as histórias, a literatura, pode nos salvar deste estreitamento que nos desumaniza e nos torna prisioneiros dos lugares comuns produzidos pela cultura de massas e pela mídia. A leitura, neste sentido, aparece como verdadeiro remédio contra os males da desumanização. Na primeira infância a leitura de livros de literatura, a contação de histórias, deve, portanto, ser encarada como uma verdadeira vacina, que pode imunizar nossos filhos das terríveis patologias da modernidade: a ansiedade, a depressão, a falta de amor e entusiasmo pela vida.

*Dante Gallian é doutor em História Social pela USP, com pós-doutoramento pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, França. É diretor e docente do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP, coordenador do Laboratório de Leitura da Casa Arca: Humanidades, Artes & Ofícios e autor do livro A Literatura como Remédio: os clássicos e a saúde da alma. Editora Martin Claret, 2017.




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