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Sociabilidade, música e leitura: como superar impactos da pandemia na primeira infância

A pandemia causou impactos na primeira infância, isso é fato. Quais são eles e como recuperar este período?

Damaris Gomes Maranhão* Publicado em 21/11/2021, às 10h26

Crianças precisam brincar e socializar
Crianças precisam brincar e socializar

A família, seja qual for sua conformação, é o primeiro grupo social onde a criança ocupa um lugar, recebe um nome, estabelece relações afetivas, aprende as primeiras palavras e constrói conhecimentos, valores, crenças e regras sociais que gradativamente vão significando sua existência e ajudando-a a construir uma identidade.

Assim, nos primeiros anos de vida, a família é o grupo social mais importante e referência na aprendizagem dos comportamentos de sociabilidade. Aos poucos, a própria família insere a criança em outros grupos que ampliam suas experiências sobre a vida em sociedade. As experiências que influenciam no crescimento, desenvolvimento e aprendizagens das crianças podem ser diversas conforme o tamanho e rede sociabilidade da família, se têm ou não irmãos, primos, tios, avós, amigos, vizinhos e o acesso aos serviços de educação infantil.

Como já escrevemos em outros textos, a educação infantil no Brasil compreende duas etapas: “as creches” ou “berçários”, para menores de três anos e onze meses, que desde que tenham acesso pode ser uma opção da família para compartilhar cuidados e educação com os professores, e a “pré-escola”, para os maiores de quatro anos, fase obrigatória a partir de 2014.

O currículo da educação infantil segundo a BNCC EI (Base Nacional Comum Curricular na Educação Infantil), é conduzido por meio das interações e brincadeiras entre as crianças permeados pelos cuidados. Considera-se diversos campos de experiência, ou seja, aspectos que interessam e sensibilizam as crianças, desde os bebês. Começa pela atenção do professor, que deverá possibilitar a participação de cada criança no processo de cuidados do seu próprio corpo, durante a alimentação, acolhendo-a e confortando-a para alternar momentos de vigília e sono, provendo sua segurança e bem estar. Os serviços de educação infantil também devem proporcionar ambientes seguros para livre movimentação, bem como o acesso aos diferentes materiais e objetos, livros, instrumentos musicais e outros que incentivem a comunicação, exploração, investigação e brincadeiras entre os pares.

Assista entrevista do Papo de Mãe sobre Primeira Infância

Assim, as crianças, desde os primeiros meses de vida, têm oportunidade de construir a consciência de si em relação aos colegas e professores, convivendo socialmente e, ao mesmo tempo, desenvolvendo habilidades para movimentar-se, expressar-se, reconhecer e comunicar-se por meio das diversas linguagens como fala, gestos, música e primeiros traços. Também aprenderá sobre os diversos sabores, aparência e tipos de alimentos, sobre as plantas e animais que têm oportunidade de observar, sentir, tocar.

Da mesma forma, a criança aprende sobre os diferentes espaços, objetos, formas, cores, quantidades, relações, transformações em seus diferentes usos. Assim também irá aprendendo sobre a expressão gestual, musical, gráfica, traços, desenhos e escrita. 

A pandemia que eclodiu em nosso país em março de 2020, impactou na rede de sociabilidade de todos nós e, sobretudo, naquela que estava começando a ser construída pelas crianças menores de cinco anos, com seus pares e professores nos serviços de educação infantil, conforme relatamos em outro texto.

Mesmo que os professores orientassem os pais sobre brincadeiras e atividades especificas que deveriam ser oportunizadas no contexto familiar, ou mesmo interagissem online diretamente com as crianças que pela idade já conseguiam fazê-lo, não tem como substituir a interação e brincadeiras diretas com os colegas do seu grupo.

Em relação ao desenvolvimento motor, preocupa-me o fato de algumas famílias pelas condições de vida e trabalho - ou até por desconhecimento do impacto negativo -  deixarem os bebês sentados muito tempo em cadeiras tipo bebê-conforto ou carrinhos. Alguns bebês que acompanhei em creches que supervisiono, mesmo antes da pandemia, tiveram problemas relativos ao desenvolvimento da musculatura dos pés devido a esta prática.

A exposição às telas e menor convívio em áreas externas pode afetar o desenvolvimento da musculatura dos olhos e interferir na qualidade do sono profundo. Assim, retomar a vida ao ar livre, a livre movimentação em ambientes seguros, bem como evitar ou reduzir a exposição às telas de computador, celular ou televisores é uma recomendação aos familiares das crianças de todas as idades.

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Em outro texto, citei que minha neta, ao responder à pergunta da mãe se gostava de ver a professora no computador, ela respondeu que “não dava para ver o coração”. Talvez tenha sido a forma de expressar a falta do contato corporal com a professora. E embora minha neta tivesse acesso a diversas e ricas experiências com seus pais, avós e tios, incluindo os pets da família, eu me preocupava com sua sociabilidade, sobretudo por ser até o momento filha e neta única.

Somente no segundo ano da pandemia ela conheceu os primos com quem tem pouco contato devido à distância das residências. Ela manteve alguns contatos eventuais com colegas de escola por meio de troca de correspondência contendo desenhos e colagens postadas pelas mães no correio.

Mas o que realmente oportunizou ricas experiencias de sociabilidade foram a convivência com outras crianças em uma praça próxima de sua residência na Vila Madalena, como descrito no texto "A praça e as crianças". 

O impacto do distanciamento social e do ambiente escolar nas crianças depende da idade, história, modos de vida e composição da sua família nuclear e estendida. As oportunidades de interações e brincadeiras com irmãos de diferentes idades, às vezes com primos e vizinhos que continuaram próximos, apesar da quarentena, pode diminuir o impacto nas aprendizagens e desenvolvimento das crianças. Sem dúvida a pandemia já faz parte da história desta geração assim como outros fenômenos sociais podem ter feito na nossa. 

A equidade de oportunidades para as crianças de todas as classes sociais é um desafio para os professores e famílias. Será necessário observar, escutar as diferentes narrativas das crianças, avaliar as competências para expressão gráfica, leituras e outras habilidades que também pode variar conforme o histórico e hábitos de cada família.

A leitura compartilhada e acesso aos livros, tanto na escola como no contexto familiar, poderá ajudar muito as crianças a desenvolverem esta prática. No início da quarentena, abriguei uma prima com seu casal de filhos, Aisha de 12 anos, e Lucas de 10 anos - ambos estudantes de ensino fundamental público da cidade de Poá. Combinamos que todos os dias escolheríamos um pequeno texto para leitura coletiva: poderia ser um trecho da história de um livro, um poema, uma reportagem do jornal. Disponibilizei a eles diversos estilos de livros, revistas etc. Escolhi um poema de Fernando Pessoa para iniciar a leitura coletiva para o grupo. Incentivei-os que continuassem a ler, provocando-os inclusive com termos que desconheciam e que pesquisamos juntos o significado. O menino Lucas gostava de desenhar e disponibilizamos um material para que desenvolvesse suas habilidades se expressando pelo desenho.

As crianças que frequentavam a rede privada puderam retornar com anuência de suas famílias, há um ano, enquanto infelizmente, em muitos municípios, as crianças da rede pública retornam apenas no final do segundo semestre de 2021. O relato de alguns professores evidencia que as crianças estavam ansiosas pela convivência com os colegas, o que às vezes aumenta a necessidade de conversas, brincadeiras entre elas e menor atenção às aulas expositivas.

Segundo depoimentos de familiares, professores e médicos pediatras, o impacto no desenvolvimento e aprendizagens das crianças pode variar de acordo com as oportunidades e experiências particulares, e depende agora sobretudo de uma parceria efetiva entre familiares, professores e toda a sociedade. 

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Damaris Gomes Maranhão

*Damaris Gomes Maranhão é enfermeira Especialista em Saúde Pública UNIFESP/USP, Dra em Ciências da Saúde pela UNIFESP, Professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, Consultora do CEDUC e Formadora no Instituto Avisalá, Mãe do Bruno e da Melissa, avó da Clara.

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