Desigualdade afetiva

A pedagoga Ana Paula Yazbek faz um alerta contra frases naturalizadas como “criança não tem querer”, “um tapinha não dói” e “o chinelo vai cantar”

Ana Paula Yazbek* Publicado em 16/06/2021, às 13h04

- A dor de uma agressão não é somente física, mas verbal, moral e emocional.

Uma coisa que sempre chamou minha atenção no meu percurso como educadora, foi a desigualdade afetiva que transparece na relação de algumas famílias com seus(as) filhos(as) e de algumas educadoras com determinadas crianças.

Chamo de desigualdade afetiva, crianças que são tratadas com indiferença pelos adultos que as cercam. Por vezes, esta desigualdade aparece de forma muito evidente, marcada por gestos bruscos e tom de voz ríspido dirigidos às crianças. Mas outras vezes, aparece de forma mais velada, por meio de pequenas violências: falas irônicas dirigidas a elas, colocação de roupas inadequadas à temperatura, falta de asseio, rotina imprevisível, entre tantas outras ações.

Estar com crianças exige de seus responsáveis muita disponibilidade para atender suas demandas. Como são dependentes, precisam que os adultos garantam seu bem-estar físico e emocional nos diferentes momentos do dia. Quando isso não ocorre, podem-se imprimir marcas doídas na constituição de suas singularidades. Por isso, é preciso estarmos atentos para modificar e ressignificar falsas “verdades” ainda tão comuns na vida de muitas crianças. Frases como “criança não tem querer”, “um tapinha não dói”, “o chinelo vai cantar”, não podem mais ser naturalizadas.

Precisamos ser contrárias a toda e qualquer forma de violência contra a criança e gostaria neste texto de salientar os vários efeitos nocivos que a violência, seja em forma de agressão física ou verbal, tem para o desenvolvimento infantil.

Há 7 anos, foi publicada no Diário Oficial da União a lei que proíbe o uso de castigos físicos e de tratamento cruel ou degradante como formas de disciplina, correção e educação de crianças e adolescentes. Essa lei, que ficou conhecida por lei da palmada, determina que adultos que descumprirem a norma serão advertidos e encaminhados para programas de proteção à família, tratamento psicológico, ou psiquiátrico. Determina, também, a necessidade de elaboração de políticas públicas destinadas a coibir a violência e difundir boas práticas de educação de menores, cabendo denúncia ao conselho tutelar frente a qualquer caso suspeito de agressão[1].

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Lembro-me que quando essa lei foi publicada, assisti a alguns debates sobre os efeitos da palmada. Um deles considerava demasiada e nociva interferência do Estado na educação dos filhos pelos pais e representantes, ao abranger todo e qualquer ato físico que não gera dano. Bater como forma de imposição hierárquica, ou de impor respeito tem como consequência ensinar à criança esse comportamento e, provavelmente, será reproduzido quando chegar a sua vez. Bater gera medo e temor.

A criança que sofre violência aprende a esperar dos outros maus-tratos, relacionando-se com o ambiente de uma forma permanentemente tensa, esperando que algo ruim aconteça, gerando um estado de antecipação do stress extremamente nocivo para o seu desenvolvimento. Bater também gera o controle do comportamento por um fator externo, no caso o temor e o estresse da autoridade.

A palmada como forma de punição é equivocadamente uma forma de ensinar uma criança que ela ultrapassou um limite, desobedeceu, se comportou mal. Traz consigo o efeito reverso, quando a criança propaga a violência em suas relações com colegas. Bater gera receio e desconfiança, pois confunde a criança na interpretação das suas ações, gerando um controle exterior a ela.

Para quem ainda acredita que um tapinha no bumbum não faz mal, lembro ainda de que a dor de uma agressão não é somente física, mas verbal, moral e emocional. A psicologia nos mostra que é possível a pessoa guardar as marcas da violência para a vida adulta, sobretudo em comportamentos como transtorno de ansiedade e depressão.

Há alguns anos, estava parada em um farol e acompanhei do meu carro uma mãe dando palmadas no bumbum do filho que parecia se recusar a sentar na cadeirinha do carro. Ela estava acompanhada por outra pessoa que fingia não ver o que estava acontecendo. Assim que o sinal abriu, entrei no estacionamento, parei meu carro atrás do carro da mulher, com muita calma me aproximei e perguntei se ela precisava de ajuda com a criança. Surpresa, constrangida e ofendida, ela respondeu com rispidez que não precisava, que ele era seu filho e que estava só fazendo manha. Ainda com calma, falei que era educadora e que poderia ajudá-la, mas que não podia permitir que batesse na criança. Consternada, ela repetiu que não precisava de ajuda, pegou o filho que chorava no colo, o acolheu e ficou me olhando. Nesta hora, falei com sua colega, dizendo que ela não podia testemunhar este tipo de agressão sem fazer nada. Ficou um silêncio constrangedor, a mãe colocou o filho na cadeirinha e entrou no carro. Eu repeti, dizendo que o que ela tinha feito era grave e que se quisesse conversar comigo em outro momento poderia me procurar. Ela não aceitou receber meu contato telefônico, em seguida sorri para a criança, entrei no meu carro e fui embora.

Não sei o quanto minha ação reverberou para aquela família, também não tenho clareza se o que fiz foi suficiente para resguardar a segurança daquela criança naquele dia. Sei apenas, que para mim foi importante ter impedido a continuidade daquela agressão e acho que fiz a mãe e sua colega pensarem sobre o absurdo daquele ato.

*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.

É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.

[1] De acordo com o site Agência Brasil, entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149 crianças e adolescentes com idades até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão, segundo levantamento divulgado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Do total, cerca de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos de idade. É uma guerra contra nossas crianças e adolescentes, agravada agora pelo isolamento social em época de pandemia, que expõe os mais vulneráveis sócio economicamente.

Assista aqui à entrevista completa com o advogado Ariel de Castro Alves sobre o caso Henry.

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