Não nascemos mães

A maternidade deve ser uma escolha. Jaqueline Vargas, autora do livro "Aquela que não é mãe", traz várias reflexões sobre o sermos, ou não, mães

Jaqueline Vargas* Publicado em 04/07/2021, às 12h38

Jaqueline Vargas é autora do livro "Aquela que não é mãe" -

Qual mulher não nasceu para ser mãe? Parece pergunta retórica, capciosa no mínimo, visto que devia ser de resposta óbvia, mas não é. Assim como a pergunta: qual mulher nasceu para ser mãe também não é.

Parafraseando Simone de Beauvoir em seu célebre dito: “não se nasce mulher se torna mulher”, não nascemos mães, nos tornamos mães.

Me parece que nós mulheres estamos sendo treinadas e há algum tempo, séculos pra não dizer milênios, para crer que a função mãe é o ponto máximo, o único grande acontecimento real em nossa trajetória. Não sentir um bebê crescer dentro de você, do seu corpo, não dar à luz, não amamentar, não acompanhar todos os passos do filho, não fazer tudo isso seria uma recusa ao que há de melhor no feminino. Ser mulher é ser mãe. Também. Penso que ser mulher pode ser tanto, são tantas possibilidades e antes da materna existe a fêmea, a política, a social, a humana, a sorora, a feminina.

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Acredito que a maternidade deva ser algo único, algo que, a priori, não poderia descrever porque não vivenciei, mas a recíproca é verdadeira. As mães não podem descrever o que vivencio. Ou podem? Penso que todas nós devemos tentar descrever e respeitando o lugar de fala de cada uma, tentar entender. E isso não tem nada a ver com empatia ou se colocar no lugar do outro. Se refere a aceitar que somos diferentes e que existem muitas verdades. Por exemplo, o amor por um filho pode ser único, mas não exclui os outros e alteridade de amores. A mãe pode amar e pensar em outro além do filho.

Não digo isso por ser uma mulher sem filhos e sim por ser uma mulher que pensa a cada dia em o que somos e em como nos relacionamos. Nós. Mulheres. Entre a gente. Como é que uma tem tratado a outra?

Durante muito tempo me senti alocada na mesa das crianças, desconsiderada como adulta por não ter um filho ou uma prole para justificar e corroborar que fiz o rito de passagem para a vida adulta. Quase na totalidade das vezes esse enquadre me foi imposto por outras mulheres. Mulheres que julgam a outra por não ter filhos, por ter abortado ou querer abortar, por assistir pornô, por usar uma saia curta, fazer topless, gostar da transa de uma noite, exercer sua sexualidade de forma distinta ou não convencional (mas cá entre nós: o que é convencional?).

Aproveito esse espaço para dizer: nunca me ressenti delas. São minhas “irmães” e penso que devemos nos ver assim. Sem conversa fraterna e sim com conversa sorora. Fraternidade, sororidade... As duas palavras não são sinônimas? Não é tudo a mesma coisa? Não. Sei que parece detalhe mas são esses detalhes de linguagem, de ação, que formam o nosso pensar e nos distanciam a séculos.

Está na hora de começarmos a nos amar mais, nos apoiar mais. Nós mulheres. Sim, não tenho filhos e você não sabe porquê, então não me julgue por ser diferente. Se não existe o dolo a outro eu não tenho que me justificar por minhas escolhas e você também não tem que se justificar pelas suas. Isso é bonito, isso é o que nos faz ser o que somos. Essas pequenas diferenças.

Só que o materno dentro da nossa sociedade, não deveria ser diferença e sim unanimidade, no entanto, essa escolha pode não ser o melhor para todas. Aquela que não escolhe ou que não é escolhida pela maternidade deve ser desconsiderada como parte do nosso clã?

Em alguns momentos de nossas vidas, ou de alguma forma, somos todas mães. Mães dos irmãos, dos amigos, dos pais, de nós mesmas e isso não é uma comparação a ser mãe de seu filho, é só uma tentativa de dizer que o materno pode ter muitas caras. Temos a maternidade em nós, não essa maternidade estruturada para nos deixar refém e submissa, falo temos a Maternidade em nós. E o que isso significa? Significa que temos um órgão criador e como criadoras criando, temos escolha.

Podemos escolher o caminho, a roupagem e o personagem que queremos em nossa narrativa. E penso que antes da escolha deve haver reflexão. Não é porque todas antes de mim fizeram, que eu tenho que fazer. Elas também passaram por muitas coisas que não queremos perpetuar: relacionamentos tóxicos, abuso, exclusão de direitos civis básicos, exploração sexual, exploração econômica, objetificação pela sociedade de consumo e um tanto mais que hoje recusamos.

O conceito de que todas devem ser mães foi inventado por quem? Qual é o pecado daquela que não reproduz? Considera-se que ao reproduzir a mulher nunca mais olhará 100% para si mesma. Ela passou por uma mitose, se dividiu metaforicamente, mas mesmo sendo uma inteira diferente ela pode se tornar presa fácil para quem quer manipular esse amor. Será esse o motivo da sociedade patriarcal insistir tanto para que todas nós sejamos mães? Há que pensar e sobretudo há que sentir, acolher a outra mulher que não pode, que não quis ser mãe. Afinal, minha “irmãe”, somos todas do mesmo clã.

*Jaqueline Vargas é roteirista, escritora e autora do livro "Aquela que não é mãe"

Assista entrevista do Papo de Mãe com Jaqueline Vargas

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