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A violência doméstica contra mulheres e crianças: não podemos parar de falar disso

A violência doméstica ainda representa uma epidemia no país. Até quando a sociedade será conivente?

Erika Tonelli* Publicado em 19/04/2022, às 09h00

O Brasil é o 5o país que mais mata mulheres
O Brasil é o 5o país que mais mata mulheres

"A história da violência contra mulheres e crianças não é bula de remédio[1]"

Assisti completamente atônita a cena de uma homem colidindo propositalmente o carro contra a mãe de suas filhas, e mais absurdo ainda: as FILHAS ESTAVAM NO VEÍCULO! O mais triste nisso é que a menina de apenas 8 anos estava voltando da delegacia, na qual a mãe foi pedir medida protetiva, e acabou tendo o fêmur fraturado.

Quanta tragédia reunida para um breve relato. Não é possível que continuemos tolerar a violência contra mulheres e crianças! Não é aceitável que os homens vejam mulheres, e pior ainda a mãe de seus filhos(as), como meros objetos a serem subjulgados aos seus desejos e a destruição.

Como podemos denominar um homem como esse? Qual é o impacto desse tipo de atitude para o desenvolvimento emocional, psicológico e físico da sua filha? Será que algum momento ele pensou nela? Acredito que não, e infelizmente vemos como esses casos se repetem em igual ou menor grau todos os dias em nosso país.

Temos legislações que garantem nossos direitos mais ainda insuficiente para que todas tenham sua vida e segurança garantida. Tudo isso para dizer, que não me assusta os números que temos encontrados nas pesquisas sobre a violência e violações de direitos relacionadas às mulheres e crianças.

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Nada do que vivenciamos agora é fruto do acaso ou da pandemia, claro que a COVID-19 acelerou muitos processos e intensificou a convivência entre as pessoas, com isso escancarou o pior que temos enquanto seres humanos e sociedade.

O aumento das taxas de feminicídios, violências domésticas de todas as formas (física, sexual, emocional, patrimonial, negligência e violação de privacidade) só veio escancarar a estrutura pela qual nossa sociedade foi desenvolvida HISTORICAMENTE. Somos um país que inicia sua história escrita e “ocidental” com uma invasão de homens, brancos, religiosos, os quais tinham missão matar, ocupar, destruir, violentar os povos originários que aqui estavam a milénios – os indígenas.

Afinal eles tinham justificativas para isso, enquanto homens e religiosos estavam legitimados a realizar toda e qualquer atrocidade. Agora que escrevo me lembrei que abril temos o Dia do Índio e da Árvore, nesta semana, aliás hoje falamos indígenas porque temos muitas etnias diferentes e segundo dados do IBGE (Censo 2010) existem hoje 305 etnias e 274 línguas indígenas. E por que falamos sempre índio?? Porque eles foram considerados como os animais (não na versão pet tá!), sem alma, sem cultura, todos iguais, apenas um objeto.

E o que isso tem a ver com o tema desse artigo? Tem tudo a ver. O Brasil surgiu de uma elite branca, europeia, cristã poderosa que se constituiu e permanece no poder a base da violação de direitos e violência contra aqueles que consideram objetos a serem subjugados aos seus infinitos domínios: indígenas, africanos, mulheres e crianças.

Quando eu entendo uma pessoa enquanto objeto, retiro dela toda e qualquer possibilidade de existência individual positiva, pois ela deve apenas existir para atender aos meus desejos e interesses. Não é à toa que na língua portuguesa temos o SUJEITO que é aquele que confere sentido a AÇÃO, enquanto OBJETO estou preso as ações do sujeito. Aproveito para exemplificar com a grande Marilena Chauí e sua concepção de violência:

Entenderemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade, e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, 1984, p. 35[2])

O outro nesse caso é aquele que não é homem, branco e cristão, ou seja: indígenas, negros, mulheres (muito pior o caso das indígenas e negras) e crianças.

Entre 2020 e 2021, dados do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), tabulados pelo Instituto Santos Dumont (ISD), mostram que no Brasil o número de violência contra as mulheres triplicou. Passou de 271.392 registros para 823.127. Como realista e baseada em evidências científicas que sou, ouso a dizer que esses números ainda não correspondem a realidade, porque ainda nem todas de nós conseguiu encontrar a voz e o entendimento dos seus direitos, bem como equipamentos públicos para acolhimento, efetivação da notificação e cumprimento da lei.

No caso das meninas, dados do UNICEF e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil 2021, demostram que entre 2017 e 2020:

Nesses quatro anos, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total. A grande maioria das vítimas de violência sexual é menina – quase 80% do total.

Esses dados mostram como apesar do país ter caminhado no sentido de estabelecer uma legislação e rede de apoio, ainda temos muito o que melhorar. Não podemos esquecer das transformações na sociedade e atitudinais das pessoas, para que a real mudança nessa cultura da violência.

O que nos leva ao título, pois temos muitos fatores complexos e profundos na estrutura da nossa sociedade e cultura para serem interpretados, combatidos e superados. Uma boa notícia nós temos, as leis estão a nosso favor, com o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, e a Lei Maria da Penha. A outra não tão boa e que temos muito o que avançar é na disseminação da informação e nas pessoas que operam o esse sistema.

É papel de cada um de nós buscar que casos trágicos de feminicídio, seja contra meninas, adolescentes, jovens e mulheres parem de ser notícias e estatísticas todos os dias nesse país.

[1] Parafraseando a grande Lilia Schwarcz

[2] CHAUÍ, M. (1984) “Participando do Debate sobre mulher e violência”. In: FRANCHETTO, B. CAVALCANTI, M.L. HEILBORN, M.L. (Orgs.). Perspectivas Antropológicas da Mulher. Rio de Janeiro: Zahar, p. 23-62.

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Erika Tonelli

*Erika Tonelli é Cientista social pela Unesp, mestrado em relações étnico-raciais e gênero, doutoranda em Educação em Direitos Humanos, docente de graduação e pós-graduação, atuo na educação e terceiro setor a 25 anos com infância e adolescência, trabalho infantil, educação antirracista,direitos das pessoas com deficiência. Fui Conselheira do CONANDA. Mulher e mãe atípica (em vários sentidos) que me trouxe com mais força as discussões de maternidade/paternidade, inclusão (tanto de alergias alimentares múltiplas e atrasos no desenvolvimento). Adepta da disciplina positiva e comunicação não violenta. Especialista em proteção infantil, diretos das mulheres e prevenção de acidentes para crianças e adolescentes.

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