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O brincar na favela: ''Tenho mais medo da polícia do que os bandidos''

Menos tempo e opção, mais exaustão e sobrecarga. Pesquisa "O brincar nas favelas brasileiras" mostra que pandemia redobrou o trabalho das mães nas comunidades

Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 11/06/2021, às 09h43

Com a pandemia, a sensação é de que o tempo se tornou ainda mais escasso, sobretudo para o autocuidado e para brincar com as crianças - Tomaz Silva/Agência Brasil
Com a pandemia, a sensação é de que o tempo se tornou ainda mais escasso, sobretudo para o autocuidado e para brincar com as crianças - Tomaz Silva/Agência Brasil

Com a pandemia da Covid-19, a vida das mães que vivem em comunidades  ficou bem mais difícil do que a das mães de classe média e alta. A falta de redes de apoio, o trabalho não-remoto e também as condições que envolvem as regiões, refletiram diretamente no brincar das crianças. Pelo menos é isso que mostra a pesquisa "O brincar nas favelas brasileiras", realizada pelo Data Favela em parceria com o Instituto Locomotiva e o movimento Unidos pelo Brincar.

Segundo os dados encontrados, cerca de 78% das mães são "chefes de família", ou seja, estão sob o comando financeiro e de cuidados domésticos, afetivos e educacionais – já que as escolas e creches fecharam por conta do vírus. Ao todo, foram entrevistadas 816 mães, moradoras de comunidades em São Paulo, Recife e Porto Alegre. Dois terços delas afirmaram que o cuidado com as crianças é a atividade que mais ocupa o tempo. Ednalda, de 31 anos, vivencia isso na pele.

A mãe da Rayssa, de 5 anos, e do Pequeno Theo, de 6 meses, vive em Paraisópolis, comunidade localizada na zona sul de São Paulo. Segundo ela, que trabalha como operadora de caixa, a falta da assistência escolar afetou bastante o bem-estar social da sua filha mais velha. Morando em Paraisópolis há 13 anos, ela compartilha da opinião que a brincadeira é essencial para a infância, no entanto, no contexto em que está inserida, é ainda mais complexo. "Aqui em casa tem bastante brinquedo, a gente brinca de mãe e filha, de boneca. Eu amo ter esse tempo com ela, mas ficou complicado", conta. Criada no interior do Piauí, que intimamente chama de "roça", ela compara a sua infância com a da pequena Rayssa, sua primogênita.

"Nunca deixei ela brincar na rua porque tenho medo. Ela pedia muito, mas eu explicava... Aqui é outra realidade, para ser sincera, eu tenho mais medo da polícia do que os bandidos mesmo. Eu não confio, infelizmente eles não respeitam. Pra eles todo mundo é bandido. É bem complicado essa parte", afirma.

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Segundo os dados coletados pela pesquisa, as brincadeiras fora de casa de fato implicam em uma série de medos e receios por parte das mães. Para 72% delas, o medo das drogas só fica atrás para o da violência, que aparece em 64% das respostas. Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, explica que o direito de brincar das crianças que vivem nas comunidades brasileiras é colocado em segundo plano, e isso é um grande problema.

"Uma coisa é você morar em uma casa grande, com babá, conexão de internet, outra coisa é a realidade das favelas. Locais super povoados, com violência, sem equipamentos públicos e com as escolas fechadas. Acontece um cerceamento no direito básico do brincar na infância, fundamental para o desenvolvimento de todos os aspectos cognitivos. Na prática, esse direito é comprometido", explica.

O papel da escola, no caso de crianças que vivem em comunidades, é de extrema relevância para o brincar. Renato destaca que o índice de evasão escolar chegou a 50%, o que em comparação às crianças de bairros nobres e de classe social média, a taxa passa a ser três vezes menor. "A escola não é um local aonde essa criança só aprende, passa o tempo e se alimenta, ela também brinca, mas com uma orientação pedagógica que os pais não têm condições de dar."

No caso de Rayssa, filha de Ednalda, a saudade da escola aparece em seus discursos, principalmente pela falta do contato com outras crianças fora do ambiente residencial. "Ela pede muito para ir à escola. Ela sente essa falta: 'Eu não tenho amiguinhas', fala. Sinto ela bastante preocupada com isso", relata. 

De acordo com os números coletados, antes da pandemia as brincadeiras aconteciam em espaços distintos, sendo que a escola e a creche possuíam grande participação. Antes, 63% das crianças brincavam em casa, agora esse número representa 85%. Quando a Covid-19 não existia, cerca de 50% das crianças brincavam nas escolas e creches, agora são apenas 9%.

"O brincar é a chance de desenvolver o abstrato e a construção de laços que serão fundamentais na vida adulta. Ao terem o brincar privado, as crianças estão sendo privadas de se relacionar melhor com os outros, de aprender de forma lúdica, de se socializar com outras pessoas, e de poderem aproveitar na plenitude a infância", comenta Renato Meirelles.

Menos tempo, mais exaustão

Mãe das filhas
Com a pandemia, mães têm menos tempo de brincar com os filhos. Foto: Data Favela

A maioria das mães que participaram da pesquisa "O brincar nas favelas brasileiras" afirma que com a pandemia e isolamento social, sobrou menos tempo para se dedicar às brincadeiras com os filhos. Além disso, outro número alarmante, é que 63% das mães disseram ter dificuldade para ajudar as crianças nos estudos, devido à escassez de tempo.

"Nas favelas, a maioria dos lares são liderados por mulheres. Não é a toa que elas estão tendo menos tempo de brincar com seus filhos.  A gente vê o crescimento da desigualdade dessa sobrecarga e do trabalho não remunerado da mulher muito grande", ressalta Renato. 

Para a coordenadora da secretaria executiva da Aliança pela Infância, Letícia Zero, o brincar livre precisa ser exercido, já que com ele, a criança encontra aprendizados importantes sobre o mundo, no entanto, requer tempo. "Existe uma necessidade de pensar, de ter tempo para se dedicar ao olhar da criança, do entendimento sobre o papel do adulto. É muito tempo e  construção de reportório para abrir esse espaço, e isso é um desafio para as famílias periféricas", ressalta.

Letícia aponta que as dificuldades do cotidiano, geralmente ligadas ao sustento do lar, também fazem parte do desafio de garantir o direito de brincar para os pequenos. "Nessa situação de pandemia, os adultos que convivem diretamente com as crianças em casa também convivem com preocupações muito fortes. Então, ao mesmo tempo que possui mais interação, essa interação é dividida."

Ednalda, que esteve de licença-maternidade nos últimos 6 meses e que agora está prestes a voltar para a rotina de trabalho, aproveitou o tempo longe do emprego para também se dedicar a filha mais velha.

"Eu costumo ensinar algumas coisas brincando mesmo, acho que ela aprende melhor, principalmente matemática", comenta. "Tem uma ONG aqui perto que é muito boa, tem variedade de brinquedo, casa na árvore, ela se diverte e adora ir lá, às vezes nem quer ir embora, mas por conta da pandemia parei de levá-la. Desde o ano passado a gente vai se virando como pode", explica.

Outro dado apresentado na pesquisa, é a questão do lazer nas comunidades, que no final das contas serve também como uma rede de apoio e amplia os horizontes e possibilidades do brincar. Entretanto, apenas 29% das mães afirmaram contar com um parquinho.

Renato Meirelles destaca que os espaços públicos são passos importantes para fornecer mais possibilidades para o fim do ciclo de desigualdade. "A lógica do estado é oferecer o melhor para quem mais precisa, e também vale para o funcionamento de creches, que possibilitam autonomia financeira dessas mães."

Outra saída também para por fim à realidade que perpetua uma condição de desigualdade entre as crianças mais ricas e pobres, é garantir escolas abertas e de qualidade, onde o brincar seja visto como parte da tarefa pedagógica e educacional, com profissionais preparados e remunerados.

*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista e repórter do Papo de Mãe

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