Papo de Mãe

“Eu não ajudo em casa”. Uma crônica sobre como é possível mudar o jogo do machismo

Roberta Manreza Publicado em 18/06/2017, às 00h00 - Atualizado às 08h25

Imagem “Eu não ajudo em casa”. Uma crônica sobre como é possível mudar o jogo do machismo
18 de junho de 2017


Por Claudio Henrique dos Santos*, jornalista, escritor e palestrante 

Esta crônica fala sobre como podemos mudar e que os bons exemplos são fundamentais. O texto fala essencialmente sobre homens, mas tenho certeza que as mães que me leem por aqui irão gostar

Toda última sexta-feira do mês era sagrado: o “poquerzinho” já era tradição entre os quatro amigos há mais de 10 anos. Sempre na casa do José Antonio, que era o mais velho e tinha uma casa mais espaçosa. Nada podia ser usado como pretexto para cancelar o compromisso. Só mesmo por motivo de doença, morte de alguém muito próximo ou casamento de um filho. E todos se orgulhavam por manter o compromisso anos a fio, quase sem interrupção.

Outra coisa que não mudava: jogava-se, bebia-se e fumava-se a noite inteira, mas no dia seguinte a bagunça deixada encontrava-se no mesmo lugar. No máximo, uma louça era deixada na pia e por lá ficava durante todo o final de semana se a esposa do José Antonio não tivesse coragem de lavá-la.

Um dia, um dos amigos resolveu quebrar a tradição e levou um “parceiro de fora”. Mauro era um colega de trabalho, uns 15 anos mais jovem do que a média do grupo. Era bom jogador de pôquer, e mais do que isso, um ótimo papo. Falava sobre qualquer assunto, de futebol a política e sempre tinha umas tiradas engraçadas. Agradou no ato. O pôquer dos quatro pelo jeito a partir de agora ganhava um novo reforço.

Final da noite, todos se levantam, começam a se despedir. O Mauro começa a recolher a louça deixada sobre a mesa e vai para a cozinha. Faz uma viagem, faz duas. Na terceira, ele pergunta se ninguém vai ajudá-lo. Os amigos se entreolham, ameaçam uma risada, mas a intimidade ainda é pouca, não falam nada. E não fazem nada também. Ele pega a esponja na pia e começa a lavar a louça.

Os amigos acham engraçado. No começo, pensam que é alguma piada, afinal o Mauro era muito divertido. Mas ele segue firme no comando da pia. Um deles fica sem graça e leva para a cozinha o restante da louça que ficara ainda na sala de estar. O dono da casa corre para dirimir o moço de “hercúleo” esforço, mas ele insiste em terminar o que já começado. Os amigos então aproveitam para fumar na varanda o último cigarro.

Mauro põe a louça no escorredor e ainda deixa a pia sequinha. Os amigos não aguentam e perguntam o que acabou de acontecer. E o Mauro responde, na maior tranquilidade: “não aconteceu nada. Eu somente fiz o que sempre faço em casa. Eu não ajudo minha esposa com a louça. Eu também não ajudo com a limpeza da casa. Eu não ajudo na hora de cozinhar. Eu não ajudo com as crianças… Eu faço as coisas, porque sou parte da minha casa. Eu também cuido dos meus filhos porque eles fazem parte da minha vida. Aliás, para eu passar essa noite tão agradável aqui com vocês, minha esposa ficou com eles a noite toda sozinha”.

Os amigos se entreolham de novo, desta vez um pouco envergonhados. José Antonio agradece a gentileza, dizendo que não precisava se dar ao trabalho. Pergunta se ele volta no mês que vem, já que o compromisso é sagrado. Mauro responde que adorou, que na próxima vai arrancar o couro dos novos parceiros de pôquer.

No mês seguinte, o Mauro não aparece. Ligou de tarde avisando que a sogra estava doente e que a esposa precisaria dormir com ela no hospital. Ele teria que ficar com as crianças. Mas na próxima, não falharia. No final do jogo, meio em tom de brincadeira, um dos amigos comenta que o Mauro fez falta e começa a recolher a mesa. O outro concorda acenando com a cabeça, já a caminho da pia. Meio desajeitado, José Antonio, pega no pano de prato pela primeira vez na vida.

O Mauro apareceu na próxima. E foi presença assídua durante mais ou menos dois anos. Duas ou três vezes levou os filhos com ele. Colocava o mais velho para dormir no sofá e o menorzinho no carrinho. Os amigos reclamavam da interrupção no meio do jogo, tiravam o maior barato. Ninguém dava o braço a torcer, mas no fundo achavam o maior barato a dedicação do rapaz.

Mauro recebeu uma promoção no trabalho e foi transferido para outro país. Os amigos sentem falta dele até hoje. Às vezes, na hora do jogo eles se falam pelo Skype. Ninguém sabe ao certo se ela vai ocupar de novo o lugar da mesa que deixou vazio. As coisas vão indo bem e ele já virou diretor da empresa lá no exterior. Mas o certo é que o jogo na casa do José Antonio e dos demais amigos nunca mais foi o mesmo depois que conheceram o Mauro.

*Cláudio Henrique dos Santos é jornalista, escritor, palestrante e autor dos livros “Macho do Século XXI” e “Mulheres modernas, dilemas modernos”. Participou do Papo de Mãe sobre ‘homens que são donos de casa’.




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