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Como animais enjaulados: O corpo das crianças na pandemia de Covid-19

Parece que estamos experimentando um estado de confinamento, restrito aos animais enjaulados

Ana Paula Yazbek* Publicado em 07/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 09h33

No pior momento da pandemia de Covid-19, uma reflexão sobre o corpo dos nossos filhos. O corpo humano não foi moldado para esse estado de confinamento. Veja os impactos da falta de contato e de espaço na infância
No pior momento da pandemia de Covid-19, uma reflexão sobre o corpo dos nossos filhos. O corpo humano não foi moldado para esse estado de confinamento. Veja os impactos da falta de contato e de espaço na infância

Após um ano, estamos atravessando o pior momento da pandemia no Brasil. Estamos cansados, assustados e tristes por tantas perdas que poderiam ter sido evitadas. Algumas crianças tiveram um breve período de volta às aulas e agora retornaram para o confinamento domiciliar. O que aprenderam, como se adaptaram, o que inventaram nesta permanência entre quatro paredes? Quais são os impactos dessa longa permanência?

Para refletir sobre essas questões escolhi pensarmos sobre o corpo das crianças. Sim, porque somos corpo o tempo inteiro, não apenas quando nos movemos. Somos corpo quando respiramos, quando sentimos cheiros, quando ouvimos, quando enxergamos, quando pensamos. Essa integralidade é essencial para entendermos melhor o que nós, e principalmente as crianças, estão atravessando.

O primeiro aspecto é o corpo como risco. A pandemia trouxe a desconfiança e o afastamento corporal. O corpo do outro é potencialmente perigoso, devemos utilizar máscaras que nos protegem, mas que afastam a percepção da criança sobre as nossas expressões faciais. O toque, o abraço e o acolhimento, tão essenciais nas relações entre as crianças e delas com os adultos, tiveram que ser substituídos por cotovelos. Lembro de um experimento que aprendi na minha infância que consistia em apertar a pele que recobre o cotovelo com toda a força. Era impossível sentir dor. A pele que recobre essa região tem pouquíssimos nervos. O abraço e o acolhimento são formas de materializar o afeto, dar segurança, contorno, liberando hormônios importantes, como a endorfina e a oxitocina, responsáveis pela sensação de bem-estar e felicidade. Neste cenário foram substituídos pela adrenalina e noradrenalina, hormônios do estresse e do medo.

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Outro ponto diretamente relacionado ao corpo diz respeito ao espaço. Precisamos de espaço para nos movermos, ver a luz do sol, ver o horizonte, interagir com ambientes abertos e diversos. A restrição domiciliar tem causado sofrimento físico e emocional para algumas crianças. Ainda que elas consigam, através do brincar, ocupar uma parte de suas rotinas, chega um momento em que surgem sentimentos como frustração e ansiedade. Parece que estamos experimentando um estado de confinamento, restrito aos animais enjaulados.

A dimensão temporal do corpo também tem sido muito comprometida. A rotina de uma jornada diária que consistia em tempo de acordar, alimentar-se, vestir-se, sair, brincar com outras crianças, repousar, ouvir histórias em rodas, voltar para a casa, tomar banho, jantar e dormir, deu lugar para um único só lugar e pessoas. Ouço de algumas professoras com filhos e filhas que esta tem sido uma das partes mais difíceis para as crianças. Elas querem sair, ir à escola, encontrar seus educadores e amigos.

O corpo e a tecnologia nunca estiveram tão próximos às crianças como nesse último ano. As aulas e os encontros online, para aqueles que podem acessá-los, têm sido a forma possível de manter as crianças em contato com seus colegas e educadores. Mas o corpo humano foi moldado para a troca presencial. É nela que podemos tocar, cheirar, ouvir diversas vozes simultaneamente, enxergar tridimensionalmente, sentir o calor, o frio. Penso que quando voltarmos ao normal, teremos que desintoxicar as crianças de tanta tela, dá-las liberdade de movimento, de expressão, de ludicidade. As escolas precisam resgatar, continuar e encontrar ricas experiências educativas para que as crianças usufruam de seus corpos como instrumento de relação e expressão de afetos.

Encerro esse texto acreditando na capacidade plástica do corpo das crianças, ou seja, na capacidade de se reinventar, de se transformar, adquirir novas competências, saber ler o que está acontecendo a sua volta e aprender as respostas mais adequadas. Neste sentido, sugiro que assistam ao documentário “Brincar em Casa”, do Território do Brincar.

Um forte e carinhoso abraço.

Ana Paula Yazbek

*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.

É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.

Assista ao programa do Papo de Mãe sobre brincadeiras antigas:

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