As telas e os bebês: por que não pode?

A psicanalista Eva Wongtschowski explica a razão de as telas serem danosas para o desenvolvimento dos bebês

Redação Publicado em 05/01/2022, às 06h00

Bebês não devem usar telas -

Há três fatos, pouco conhecidos entre nós, sobre os quais é interessante pensar.
Primeiro: pais que trabalham no Vale do Silício, na Califórnia, EUA, controlam com rigor e sem titubeios o tempo que seus filhos ficam diante das telas (seja T.V, computador, celular). Como vocês sabem muitas startups e empresas globais de tecnologia, estão instaladas lá. Há especialistas em tecnologia em profusão por lá.
 Segundo: a China estabeleceu restrições ao mercado mundial de jogos digitais, e determinou que os jovens não podem passar mais do que três horas por semana jogando na tela. Como consequência muitas empresas deixaram o mercado chinês.
Terceiro, Michel Desmurget, autor do livro” A fábrica dos cretinos digitais”, nos lembra de que nosso cérebro, sua anatomia, fisiologia, forma de funcionamento se mantém o mesmo há séculos. E para se adaptar ao novo ambiente digital necessitará de muitos mil anos.

De acordo com ele, as crianças devem ter contato com as telas apenas a partir dos seis anos! E mesmo assim com tempo controlado. Desmurget nos lembra de que tudo o que há de mais triste e tenebroso do ser humano está na internet, e nem tudo que há de mais interessante e construtivo está lá.

As consequências de manter bebês e crianças pequenas diante da tela têm sido tão frequentes e graves que levaram a Sociedade Brasileira de Pediatra a elaborar um manual para médicos, alertando-os para um grupo importante de sintomas que aparecem na clínica. Atrasos na fala e linguagem, transtornos de sono (a luminosidade da tela provoca um decréscimo na produção da melatonina), dificuldades de atenção e memória. Bebês e crianças pequenas reproduzem o que veem e ouvem nas telas como se elas - as telas - fossem seus principais interlocutores. Há crianças que passam tanto tempo na T.V. ou celular que seu repertório se restringe ao que ouvem e veem ali. Num longo texto de 350 páginas o autor faz constatações preocupantes.

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O que é mais fundamental e construtivo para um bebê e criança está na relação com as pessoas. É no contato direto, com que dizem e fazem, com suas respostas ao gesto, olhar, tom e modulação de voz, tato, olfato, choro, todas as iniciativas de um e de outro, é com esse conjunto que o bebê se faz, se transforma em ser humano, desenvolve sua sensibilidade e inteligência.

A tela se comunica com todos e nenhum bebê em particular; um ser humano em particular, na relação com outro ser humano em particular, tece um diálogo com palavras, olhares, expressões, movimentos onde cada um responde ao que o outro diz e ou manifesta. Prazer, desprazer, satisfação, surpresa, decepção, afetos de muitas nuances são transmitidos. A reciprocidade, o ir e vir na comunicação entre o bebê e o adulto é indispensável.

Observando um pai que canta ao violão para o filho de poucos meses, o próprio pai, ele mesmo, se impressiona com a atenção concentrada que o filho mantém durante longos minutos ouvindo- o: o bebê ouve com atenção porque o pai canta para ele. A mensagem é para ele. Os adultos vão colorindo o diálogo com sentidos. A conversa circula, há espaço entre o que um fala e o que o outro responde.

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A mãe observa como o bebê (a criança maior) recebe o que ela diz ou faz, e espera a resposta. Este intervalo, este espaço entre as falas, é precioso. Estabelece-se uma conversa, há circulação de sentido. Vendo T.V. ou um desenho no youtube não há circularidade. O que é falado ou realizado só tem uma direção, o que tira da criança a condição de expressar o que é próprio dela, e manifestar como é recebido o que o outro diz, qual é o sentido que o adulto dará ao que expressou. Olhando uma tela a criança não é olhada, solicitada em nada, nem pode perguntar; e se por acaso não estiver gostando ou não estiver entendendo nada do que vê, a tela não toma conhecimento disso. A tela não se dirige a ela.

A troca, tão vital para um bebê e uma criança pequena, se dá - por ora é assim que funciona - entre pessoas. Como diz uma especialista o “Google informa, mas não forma”. O que é central na vida de bebês e crianças são as ideias e sentimentos muitas vezes contraditórios dos pais, o vai e vem do mundo psíquico, os altos e baixos, os dias bons e os ruins, essas referências é que vão desenvolver a imaginação e a capacidade de pensar. Vale lembrar que nos primeiros meses de vida do bebê os pais usam sua intuição e a experiência com o próprio corpo para cuidar do bebê. Eles partem de si mesmos, para saber do bebê. O adulto oferece tempos e ritmos de acordo com o momento. A aquisição da noção de corpo se dá na presença do corpo de outra pessoa; o desenvolvimento do sistema nervoso pede, precisa destes ritmos e tempos para se estabelecer.

Antes da existência da T.V, do computador e do celular como se cuidava dos bebês? Como era mesmo? De fato, as novas tecnologias mudam nossa forma de pensar, de perceber o mundo, de nos organizarmos, de falarmos uns com os outros. Não há precedentes na história de mudanças tão rápidas: não temos ainda o alcance de que transformações isso provocará, que impacto haverá na constituição da subjetividade, no modo como cada um se organiza internamente, consigo mesmo.

O uso onipresente do digital provoca descontinuidades importantes em nosso mundo interno, psíquico. Estabelece-se uma confusão entre a imaginação e a realidade, o que é da ordem da ficção é vivido como sendo concreto, do mundo real. Os sinais estão se tornando muito evidentes: perda de referência, depressão, aumento importante nas taxas de suicídio entre adolescentes e jovens adultos, cansaço e exaustão permanentes pela exigência de dar conta de muita informação ao mesmo tempo. Há uma epidemia de sintomas aos quais se dá o nome de “hiperatividade”,” déficit de atenção” como consequência da falta de assistência - companhia, conversa brincar junto - que as crianças estão vivendo. Hiperatividade e déficit de atenção não são distúrbios cerebrais, mas transtornos de ordem cultural. O menos pior é um aumento expressivo da miopia na infância.

O bebê (ou criança pequena) diante da tela recebe um excesso de estímulos sensoriais que saturam o sistema perceptivo: estímulos visuais, auditivos numa quantidade tal, impossível de serem processados. As crianças recebem os estímulos numa posição passiva, como que hipnotizados, sem ter o que fazer com eles, sem escolha nem decisão possíveis. A memória não se estabelece, porque não há tempo para o processo envolvido se dar.

A diferença entre realidade e ficção fica borrada, se confundem; ninguém faz a mediação entre o que o bebê vê e ouve, não se estabelece uma experiência com sentido. Bebês e crianças que ficam longo tempo diante da tela não têm nem mesmo a oportunidade de se entediarem. Ficam plugados. Não há espaço para a criação, inventar formas de usar o tempo, aquele em que não há nada para fazer: imaginamos, inventamos brincadeiras, mundos infinitos do faz de conta. Mas para tanto são necessários recursos na forma de palavras, histórias contadas, maneiras de resolver problemas e encontrar soluções para as coisas que nos acontecem no dia a dia.

Especialistas, levando em conta a prevalência de telas na nossa vida, estabelecem a idade mínima de dois anos para o primeiro contato com elas e indicam um controle rígido de tempo que é no máximo de 1 hora por dia, com a ressalva de evitar o contato duas horas antes da hora de dormir.

Os melhores brinquedos são aqueles com os quais o bebê possa ir aprendendo como usar, ir pesquisando, por conta própria, como pode manipulá-los. Não é o brinquedo que o manipula, mas é o bebê quem decide o que, como e quando fazer. Ele se torna protagonista e dono da brincadeira.

Há crianças (pequenas, médias e grandes) mais afeiçoadas às suas telas do que às pessoas. Se houver alguma falha em alguns dos aparelhos isso provoca ansiedade, intolerância. É preciso resolver imediatamente, caso contrário, a criança se desespera. Quanto mais rápido temos o que queremos, menos tempo podemos esperar. Estabelece-se um verdadeiro vício, uma adicção igual a das drogas. Não dá para viver sem. Vocês devem conhecer crianças que quando chamadas, solicitadas para alguma coisa, simplesmente não ouvem por estarem hipnotizadas pelo digital.

Lembremos, nunca é demais, que o ato de brincar requer um uso ativo das nossas competências e habilidades, e justamente pelo uso é que vão se desenvolvendo e se tornando mais sofisticadas e eficientes. Brincar exige elaboração, envolve um trabalho complexo tanto intelectual quanto emocional. Cuidar de bebês e crianças exige uma disposição colossal. Os pais precisam de ajuda. É impossível hoje esperar que pais deem conta sozinhos da tarefa de acompanhar e educar as crianças. Sem esquecer que crianças crescem, vão ficando mais autônomas. E devagar vão colaborando e ajudando os pais.

O uso excessivo das telas tem relação direta com o fato de que é a primeira vez na história que os filhos têm um quociente intelectual menor que o dos pais.

Eva Wongtschowski

*Eva Wongtschowski é psicanalista do Gamp 21

Bibliografia

Desmurget, M. A fábrica de cretinos digitais. O perigo das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021.
Gueller, A.S. Droga de celular! Reflexões psicanalíticas sobre o uso de eletrônicos. In As intoxicações eletrônicas. O sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017 Jerusalinsky, J. As crianças entre os laços familiares e as janelas virtuais. In Intoxicações eletrônicas. O sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017

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