Trabalho infantil é porta de entrada para o crime, drogas e exploração sexual

Consequências, atrasos e desigualdade. Especialistas explicam efeitos e causas no Dia do Combate ao Trabalho Infantil

Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 12/06/2021, às 10h48

Foto de divulgação do livro "Meninos Malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil" - Foto: Tiago Queiroz Luciano

Em seu livro-reportagem "Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil" recém-lançado, a jornalista Bruna Ribeiro traz dez histórias reais de crianças e adolescentes que vivem sob condições precárias, trabalhando nas ruas, lixões, roças e até mesmo em cemitério. Eles tiveram suas identidades preservadas. Leia nesta reportagem a entrevista com a autora do livro.

Segundo o código penal brasileiro, o trabalho infantil é crime. Na prática, nem tanto. Seja em áreas urbanas, onde crianças são aliciadas em pontos de vendas de drogas ou semáforos, ou em áreas rurais, onde elas trabalham nos campos e nas lavouras, o fato é que não precisa ir longe para encontrar tal realidade.

Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que no período entre 2017 e 2019, 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos ainda estavam em situação de trabalho infantil, sendo que 45,8% delas trabalhavam em condições insalubres.

Muitas vezes mascarado como um problema "pontual", o trabalho infantil é, na realidade, apenas a ponta do iceberg, segundo alertam os especialistas. O Dia Mundial do Combate ao Trabalho Infantil lembrado neste 12 de junho, serve exatamente para chamar a atenção sobre os riscos de tal prática, que só piorou com a pandemia da Covid-19, conforme a perspectiva do UNICEF.

Apesar de não existirem números amplamente consolidados, a pesquisa divulgada recentemente mostrou que o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões em todo o mundo – um aumento de 8,4 milhões só nos últimos quatro anos.

A capital paulista foi um dos pontos estudados pelo UNICEF. A amostra coletada entre os meses de abril a julho de 2020, identificou a intensificação do trabalho infantil na cidade. O aumento chegou aos 26% entre as famílias entrevistadas em maio, comparadas às entrevistadas feitas em julho. A questão é que além de terem suas infâncias roubadas, essas crianças também correm sérios riscos: são expostas à criminalidade, risco de vida, drogas e exploração sexual.

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Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos humanos pela PUC- SP e fundador da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB Nacional, afirma que é preciso parar de ver tal problema de forma isolada e entender que o trabalho infantil está dentro de um contexto que traz outras violações contra os direitos fundamentais. Em outras palavras, a exploração da mão de obra nunca vem só.

"A criança que está lá no farol  (semáforo) fazendo malabares e vendendo bala é logo aliciada por alguém que promete duplicar seu ganho. O trabalho infantil deixa a criança exposta em meio à cobrança do sustento do lar. A partir daí ela tenta outras formas de conseguir dinheiro", aponta.

A pressão para prover o sustendo doméstico e ajudar com as contas de casa –  isso quando considerado que existe tal lar e o contexto familiar – faz com que o trabalho que pode parecer às vezes "inocente", se transforma em algo pior, como o aliciamento de menores.

"As pessoas falam: 'melhor estar trabalhando do que roubando'. É uma frase muito clássica daqueles que querem justificar o trabalho infantil, mas na minha experiência, o trabalho é a porta de entrada para o envolvimento com a criminalidade juvenil e outros riscos. A sociedade defende o trabalho infantil, mas para o filho do pobre", afirma Ariel.

Além disso, a criança que está trabalhando está fora da escola e já se sabe que a evasão escolar aumentou na pandemia.

Retrocesso visível

Moeda para criança deveria ser apenas a de chocolate.

O Brasil deve retroagir de forma significativa com relação à diminuição do trabalho infantil, na perspectiva de Ariel de Castro Alves. O especialista explica que a crise humanitária, social e econômica pela qual o país vem passando, reflete diretamente no contexto de exploração da mão de obra de crianças e adolescentes.

"Comerciantes preferem colocar um adolescente ou uma criança sem direito, ao invés de colocar o pai ou a mãe dessa criança. Eles contam com a falta de fiscalização. Inclusive o atual governo desmontou toda essa fiscalização, até porque não há interesse em combater o trabalho infantil. O governo é apoiado por esses setores", explica.

Ariel também destaca que a junção do desemprego com a onda de flexibilização do mercado de trabalho são agravantes para a proteção dessas crianças. "Com mais de 14 milhões de desempregados e milhares de pessoas no subemprego, trabalhadores autônomos, muitos pais e mães que perderam a renda. As crianças acabam forçadas a ajudarem no sustendo doméstico e isso contribuí para o aumento do trabalho infantil, que é algo notório até nos próprios faróis", conta.

O novo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alertou que, no mundo, cerca de 8,9 milhões de crianças e adolescentes correm o risco de ser empurradas para o trabalho infantil até o final de 2022 como resultado da pandemia. "Um modelo de simulação mostra que esse número pode aumentar para 46 milhões se eles não tiverem acesso a uma cobertura crítica de proteção social", acrescentou a pesquisa.

Relação direta com a exploração sexual

Foto de divulgação do livro "Meninos Malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil"(Foto: Tiago Queiroz Luciano)

Atualmente o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking de exploração sexual infantojuvenil, ficando atrás apenas da Tailândia. São cerca de 500 mil casos por ano. E para a OIT, a exploração sexual é uma das piores formas de trabalho infantil. Eva Cristina Dengler, Gerente de Programas e Relações Empresariais da Childhood Brasil, explica a relação entre os dois temas tão delicados e complexos, que na maioria das vezes, se encontram.

"Quando você insere uma criança em um contexto de trabalho, que é predominado por adultos, ela possui grande chance de ter contato com a exploração já que está longe do seu ambiente de proteção, quando ele existe", comenta. Para entender porque isso ocorre, Eva afirma que para compreender, é preciso partir da lógica socioeconômica: quanto mais aquela criança ou adolescente precisa de dinheiro, mais risco ela corre.

"Depende da pressão que existe para ela conseguir o ganho. Normalmente essas pessoas que exploram percebem a vulnerabilidade. No caso das crianças, elas não possuem nenhum discernimento já que estão em desenvolvimento cognitivo, emocional e físico", afirma.

No caso de crianças e adolescentes sem estrutura familiar, é ainda mais fácil. "São relações de poder assimétricas, temos que entender isso. O adulto tem mais capacidade de convencimento, de fazer com que a criança entenda que aquilo que ela está fazendo é ótimo para ela, quando, na verdade, não é".

Segundo o relatório Mapear 2019/2020 - Mapeamento dos Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras, realizado a cada dois anos pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), os pontos de mais vulnerabilidade à exploração sexual são áreas urbanas. Eva afirma que por serem de fácil acesso, as grandes cidades têm uma procura maior, sendo o oposto do que muito se diz sobre o cenário.

"Achamos que era um local pouco iluminado, mas descobrimos que é ao contrário. Descobrimos que esse crime acontece de noite e de dia, à nossa vista. Como ninguém entende a exploração sexual, é algo mal-entendido pela sociedade, ninguém percebe o que está acontecendo com essas crianças nos meios dos carros e dos caminhões, ninguém denúncia".

Consequências e atrasos

Em seu livro-reportagem "Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil" recém-lançado, a jornalista Bruna Ribeiro traz dez histórias reais de crianças e adolescentes que vivem sob condições precárias, trabalhando nas ruas, lixões, roças e até mesmo em cemitério. Eles tiveram suas identidades preservadas.

Além dos relatos tocantes, Bruna também apresenta dados sobre as consequências do trabalho infantil. Um dos que mais chamam atenção é a evasão escolar. Isso porque segundo o IBGE de 2019, 14% das crianças que trabalhavam estavam fora da escola. Já entre os que não trabalhavam, o índice caía drasticamente para 3,5%. Para o membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel de Castro Alves, esses números reforçam a desigualdade de oportunidades.

"O trabalhador infantil de hoje é o desempregado de amanhã. O mercado de trabalho é muito exigente e competitivo, precisa de pessoas qualificadas. A criança que tem sua infância suprimida, inclusive educacionalmente, não vai estar qualificada para concorrer no mercado", aponta. "Elas não vão conseguir disputar com as crianças e adolescentes das classes abastardas."

Além do atraso na corrida da "meritocracia", o trabalho infantil também prejudica o desenvolvimento físico e psicológico, segundo o especialista. Não é por menos que o  Sistema de Informação de Agravos do Ministério da Saúde registrou entre 2007 a 2009 que 27.924 crianças e adolescentes sofreram acidentes graves de trabalho.

Racismo estrutural

Outro recorte que se pode ter quando se trata da exploração da mão de obra infantil é o racismo estrutural. Segundo dados do IBGE, presentes no livro "Meninos malabares", 66,1% das crianças e adolescentes que estão no contexto de trabalho infantil são negros ou pardos. Ao todo, são 66,4% meninos e 33,6% meninas.

Para a jornalista Bruna Ribeiro, é preciso trazer a questão a tona. "A gente precisa fazer essa reflexão. O trabalho infantil é fruto da desigualdade social e do racismo estrutural", comenta. "Se voltarmos na linha do tempo, é consequência do tempo da escravidão. Naquela época, as crianças também eram escravizadas e o meninos trabalhavam nas lavouras enquanto as meninas ficavam com os afazeres domésticos", completa.

A solução, na opinião da autora, é que políticas públicas que promovam a erradicação da desigualdade social, fornecendo educação, saúde e estrutura, para que o trabalho infantil não seja mais uma "saída" para muitos jovens e crianças.

"Temos na nossa constituição essa naturalização da criança negra e em vulnerabilidade trabalhar. É um registro histórico e quando você vai pra rua e vê tudo isso se concretizar na sua frente... todos os dados e análises ali, na vida de alguém, é uma angústia muito grande. Mas acredito que as pessoas precisam conhecer essas histórias", conclui.

*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista e repórter do Papo de Mãe

Para adquirir o exemplar do livro "Meninos malabares –Retratos do trabalho infantil no Brasil", da editora Panda Books, acesse aqui.

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