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Pela garantia de qualidade técnica de laudos, perícias ou estudos em varas de família brasileiras

Advogados da área de direitos humanos e questões de gênero explicam questões que envolvem violência doméstica, violência contra a mulher e varas de família

Artenira da Silva e Silva Profa, Patrícia Tuma Martins Bertolin, Adriana Mazzarino, Rosa Cleide Nóbrega Bezerra e Arnóbio Rocha (advogadas e advogado)* Publicado em 02/06/2021, às 17h00

A violência doméstica no Brasil faz cada vez mais vítimas entre mulheres e crianças
A violência doméstica no Brasil faz cada vez mais vítimas entre mulheres e crianças

Quando uma manifestação técnico-científica é demandada pelo juízo, a fim de suprir uma lacuna de conhecimento específico não dominada pelo juiz da causa, deve-se indiscutivelmente atentar para a comprovação de especialidade do perito designado para produzir a prova em questão, bem como é imprescindível que o perito atente para o fiel cumprimento de todos os requisitos impostos pelo Código de Processo Civil e pelo seu Órgão de Classe para a realização da perícia determinada.

Ser graduado em uma determinada área de atuação não necessariamente define especialização suficiente para emitir documento técnico que irá configurar prova judicial em ações cíveis ou penais. Apenas a título de exemplo, em regra, não se contrata um advogado tributarista para atuar em uma complexa lide de família. Ou ainda, nenhum de nós, caso precisasse de uma neurocirurgia, concordaria em ser operada/o por um gastroenterologista, embora ambas/os as/os profissionais do primeiro exemplo sejam bacharéis em direito e as/os do segundo sejam igualmente médicas/os.

Quando se está diante de uma lide familiarista que envolva a violação de direitos humanos de mulheres, se está diante de um dos objetos de estudo mais complexos possíveis na área do direito, que decididamente requer um olhar técnico preciso para que não se fragmente o fenômeno ajuizado, sob pena de descaracterizá-lo, reduzindo-o de modo a configurar violência institucional por imperícia ou omissão. Seria o mesmo que reduzir um ou alguns sintomas da Covid (tosse, febre, dores musculares, dificuldade respiratória) à virose em si, o que configuraria um equívoco óbvio, demonstrando-se ser cientificamente inviável reduzir a Covid-19 a “uma gripezinha”.

Observe-se que o próprio conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro foi alterado pela Lei no 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que priorizou o princípio da afetividade para definir família, em detrimento de elos meramente biológicos que, apesar de relevantes para caracterizar deveres parentais, não dá conta por completo dos diferentes arranjos sociais dos diversos tipos de famílias existentes em pleno século XXI.

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Igualmente importante, quando diante de uma prova técnica psicológica ou social em juízo, é diferenciar dois conceitos centrais e reiteradamente considerados em normativas pátrias e tratativas internacionais ratificadas pelo país, visando diferenciá-los cientificamente: conflito familiar de violência doméstica ou familiar de gênero contra mulheres. Um conflito familiar pode definir divergências conciliáveis e passíveis de serem discutidas em juízo pelas partes em pé de igualdade, o que é, por sua vez, pressuposto para que possa ser conduzido legitima e livremente um processo de mediação ou de conciliação em juízo, ou seja, sem o exercício de pressões, e, ou de mal uso de estereótipos de gênero durante as audiências.

No entanto, quando se está diante de uma violação de direitos humanos de mulheres, com exercício de controle e posse sobre a mãe, causando- lhe tensão, humilhação ou desqualificação em peças processuais, inclusive configurando abuso de direito, materializando assédio processual, comprometendo a autoestima da mulher e ou seu pleno desenvolvimento não se está diante de partes em pé de igualdade. De conformidade com o art. 7o da Lei Maria da Penha, há que se atentar para aplicação conjunta do CPC, do ECA, da Lei 11340/2006 e, no mínimo, da Convenção de Belém do Pará para se decidir sobre casos concretos que envolvam violação de direitos humanos de mulheres em âmbito familiar ou doméstico.

Não é aceitável que se utilize o Sistema de Justiça para reafirmar a desqualificação social da figura feminina com a intenção de retirar da mulher qualquer ímpeto de exercer seu direito a viver uma vida livre de violência, conforme preconizado e reiteradamente defendido como pauta importante pelo Conselho Nacional de Justiça.

A violação de direitos humanos de mulheres, especialmente em âmbito familiar, é definida pela ONU como a segunda maior pandemia do século. Desconsiderar fatos como esse, em detrimento de opiniões subjetivas, não serve para o enfrentamento dos dados de pesquisas empíricas em direito, cujas conclusões são alarmantes.

Não se pode deixar de enfatizar, ainda, que todos os operadores do Sistema de Justiça brasileiro, diante de violação de direitos humanos de mulheres ou de outros grupos vulneráveis, são compelidos por lei a atuar em conformidade com as tratativas internacionais assinadas pelo país, sob pena de responsabilização administrativa ou cível por violação, que pode configurar violência institucional.

Logo, em um momento no qual a ciência tem sido mundialmente valorizada e convocada a dar respostas precisas para as mazelas humanas, incluindo-se as sociais, é de máxima importância que se prime pelo exercício de uma advocacia emancipatória e técnica nas varas de família e nas varas especializadas de proteção à mulher no país, o que, por sua vez, requer qualificação científica continuada e não autodidata, conforme já recomendado pela Organização dos Estados Americanos desde antes de 2006, ano de promulgação da Lei Maria da Penha.


Assim sendo, em nome da segurança jurídica, não é aceitável, sob os aspectos científicos e legais, que se produzam pareceres, perícias ou estudos psicológicos ou sociais subjetivamente opinativos, sem que explicitem a devida fundamentação teórica e metodológica para o alcance das conclusões neles contidos, sob pena de se impedir o acesso à justiça JUSTA, comprometendo a garantia de um direito fundamental básico de todas as partes envolvidas nos processos judiciais.

Diante de uma prova sem a fundamentação científica devida ou ainda sem que o especialista em questão apresente nos autos a comprovada expertise técnica específica para sua atuação frente ao objeto de perícia ou estudo determinado, há que se garantir a produção antecipada de prova em juízo por meio da interposição de interpelações cíveis, que permite aos profissionais se explicarem, dirimindo dúvidas em juízo, embasando o convencimento da/o magistrada/o.

O deferimento de interpelações cíveis de peritos judiciais constitui assim ato inconteste que deve ser célere para que não se obste o contraditório e a ampla defesa de qualquer das partes envolvidas em uma ação judicial, cujas decisões, independentemente de serem reformadas posteriormente em sede recursal, podem impactar irreversivelmente a vida de famílias inteiras, dado o lapso temporal entre a decisão exarada e uma possível reforma da mesma, especialmente se considerarmos que o produto a ser entregue a quem busca o Sistema de Justiça é ACESSO À JUSTIÇA JUSTA.

Recentemente o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em primeira e segunda instância, prontamente deferiu a interpelação civil em face a uma psicóloga judicial, conferindo-lhe prazo para prestar esclarecimentos acerca de documento por ela elaborado, enquanto a 10ª Vara Cível de São Luís do Maranhão “transformou” uma interpelação civil que lá tramita em mera “notificação”, após ter ficado meses parada, além de ter indeferido outra interpelação civil lá impetrada, cuja apelação se encontra também, há meses, aguardando deferimento, pelo Tribunal de Justiça do Maranhão.

Ou seja, se a ninguém deve interessar, especialmente ao juízo, deixar de esclarecer fatos graves e dúvidas sobre provas técnicas produzidas em qualquer processo, considera-se muito importante que se atente à interposição de interpelações cíveis como uma possível via segura para o esclarecimento devido e o exercício do contraditório de provas técnicas, psicológicas ou sociais, realizadas por determinação judicial, uma vez que uma interpelação sequer será avaliada em termos de mérito, mas constitui importante produção antecipada de prova.

*Dra. Artenira da Silva e Silva: docente e pesquisadora do mestrado em direito e instituições de justiça da Universidade Feceral do Maranhão e consultora em violação de direitos himanos de mulheres.

*Dra.Patrícia Tuma Martins Bertolin: docente e pesquisadora em estudos de gênero da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

*Dra.Adriana Mazzarino: advogada especializada em gênero, com atuação transdisciplinar em violação de direitos humanos de mulheres.

*Dra.Rosa Cleide Nóbrega Bezerra: advogada especializada em gênero.

*Dr.Arnóbio Rocha: Coordenador do Núcleo de Ações Emergenciais e Defesa de Direitos Ameaçados, Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e patrono de causa internacional de violação de direitos humanos de mulheres junto à OEA.

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