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Caso DJ Ivis: lições para nunca mais esquecer

Promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de SP, escreve sobre o caso do DJ Ivis

Valéria Scarance* Publicado em 13/07/2021, às 19h59

DJ Ivis agride esposa - Reprodução de circuito interno
DJ Ivis agride esposa - Reprodução de circuito interno

Nos últimos dias um vídeo que circulou pelas redes sociais chocou e paralisou o país. No vídeo, há cenas de agressão do DJ Ivis contra a esposa: na primeira, a vítima está sentada na sala cuidando da bebê do casal, quando é agredida na cabeça na presença de uma mulher. Tamanha a violência, o carrinho com a criança chega a balançar. Tudo acontece na presença de uma mulher, que pega a criança e nada mais faz; na segunda cena, a agressão tem início no quarto e prossegue na sala, são violentos chutes e socos e há um homem presente, que calmamente se retira do local.

Um triste retrato do Brasil e da história de muitas mulheres. É o que acontece a cada 08 minutos em nosso país, em que 1 a cada 4 mulheres sofre violência, segundo último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Esse fato nos traz a uma necessária reflexão quanto ao inconsciente coletivo que perpetua e por vezes banaliza a violência contra a mulher. A violência está amparada em falsas ideias, “pré-conceitos”, que reinam poderosos e amparam homens autores violentos. Isso precisa mudar. Aqui, algumas reflexões.

Quem "canta" amor muitas vezes não canta "respeito"

Comumente, avalia-se o comportamento dos homens a partir de sua postura social de honestos, trabalhadores, religiosos, bons pais, “bons cidadãos”, por vezes apaixonados que declaram amor publicamente.

Homens dominadores e violentos em regra têm a postura de bons cidadãos fora de casa, mas, dentro de casa, são arrogantes, dominadores, brigam por qualquer motivo e depois culpam a parceira.

Para se avaliar a violência, é preciso se ater somente a fatos.

A promotora de Justiça Valéria Scarance
A promotora de Justiça Valéria Scarance

Violência não escolhe classe social

Após quase 15 anos de vigência da Lei Maria da Penha, ainda hoje, muitas pessoas acreditam que a violência está associada à falta de instrução, dinheiro ou restrita às classes sociais mais pobres.

A violência é democrática e pode atingir qualquer mulher. Por isso, é importante, que mulheres saibam identificar sinais de uma relação abusiva logo no início do relacionamento. Em regra, esses relacionamentos envolvem: controle da vida da parceira, isolamento da família e de amigos e ciúmes excessivo."

Nenhuma mulher "tem que aceitar"

No caso do DJ Ivis, segundo relatos da vítima, pessoas próximas diziam que a vítima “teria que aceitar”, pois esse era o “jeito dele” e o “temperamento dele”.

Nenhuma mulher é obrigada a tolerar ofensas ou qualquer forma de violência por parte do parceiro. Não existe justificativa para desrespeito.

A Lei Maria da Penha prevê a violência psicológica como qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, mediante chantagem, manipulação, isolamento, vigilância, perseguição, humilhação, ridicularização e outras condutas.

Essa conduta de violência psicológica está prevista em um projeto de lei e está prestes a se tornar se tornar crime (art. 147-B do Código Penal), com pena de 6 meses a 2 anos de prisão, pendente apenas de sanção do Presidente da República.

Agressores atacam a vítima como estratégia de defesa 

Desde Eva, as mulheres são retratadas como a perdição do mundo – e dos homens. Loucas, bruxas, sedutoras, maquiavélicas, engenhosas, interesseiras, destruidoras de lares, alienadoras. Sempre foi assim na história, nas ciências, na literatura, nas lendas, nas leis.

Como reflexo dessa construção cultural e histórica, homens autores de violência usam como estratégia de defesa o ataque às mulheres. Quando acusados, dizem que as vítimas são loucas, doentes, “inventam” coisas, e – se eles agrediram – agiram em sua própria defesa.

O mais triste é que parte da sociedade se compadece do autor da violência e passa a atacar a vítima. Invertem-se os papéis. Réu vira vítima e a vítima vira ré sob os olhos da sociedade. Outrora agredida, a mulher transforma-se em “interesseira” , “louca”, “egoísta”.

Como sociedade ou profissionais, temos muita responsabilidade: todo cuidado é pouco antes de se criticar uma vítima de violência, pois a crítica a uma mulher tem o poder de fazer calar uma legião de outras vítimas.

Quem se omite, apoia 

A omissão diante de um espancamento não é só uma omissão. É um recado: eu vejo, eu posso ajudar, mas eu não me manifesto porque para mim é indiferente. A omissão é um apoio implícito.

Por outro lado, a postura de quem não se omite diante de uma situação de machismo ou violência é determinante para a modificação de um comportamento. Pesquisa do Instituto Avon revelou que o principal fator de mudança de atitudes machistas em 54% foi o diálogo com outra pessoa (O papel do Homem na Desconstrução do Machismo).

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Agredir a mãe causa danos para a saúde de filhos e filhas 

Não importa a idade da criança. A violência no contexto familiar provoca danos à saúde de filhos e filhas de qualquer idade. Além dos traumas, estudos apontam que há sequelas para a saúde das crianças.

Os pesquisadores americanos Isabelle Mueller e Ed Tronic, das Universidades de Massachusetts Boston e Harvard, referem que a exposição à violência de parceiro íntimo (VPI) provocam para filhos sintomas de trauma, psicopatologia, impacto para desenvolvimento cognitivo, córtex auditivo e visual. Dentre os impactos referem problemas alimentares, distúrbios do sono e distúrbios do humor, irritabilidade, gritos e choro. Referem, ainda que “depois dos sintomas de aumento da excitação, medo e agressão, a interferência no desenvolvimento foi o sintoma de trauma mais frequentemente relatado em bebês que testemunharam formas graves de VPI. Por exemplo, a perda temporária de uma habilidade de desenvolvimento já adquirida, como o uso do banheiro ou mesmo a linguagem” (Exposição à violência na infância: consequências no desenvolvimento no cérebro e no comportamento).

Em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher 

Os fatos envolvendo o DJ Ivis levam à reflexão sobre o nosso papel na sociedade: não se omitir diante de uma situação de violência, mas também contribuir para a modificação desse inconsciente coletivo que permite que homens desrespeitem, menosprezem e violem mulheres. Que seja nosso mantra de todos os dias: em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher!

*Valéria Scarance é Promotora de Justiça, coordenadora do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo e professora da PUC-SP

Assista participação da promotora Valéria Scarance de live do Papo de Mãe sobre violência doméstica na pandemia

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