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O caso da juíza de Santa Catarina: quais foram as violações de direitos da criança, além da negativa do aborto?

A atitude da juíza Joana Ribeiro Zimmer é reflexo de um sistema que fere direito de crianças e adolescentes, em especial do gênero feminino

Marília Golfieri Angella* Publicado em 24/06/2022, às 10h00

Imagem O caso da juíza de Santa Catarina: quais foram as violações de direitos da criança, além da negativa do aborto?

Duas semanas e dois dias foi o tempo que impediu a menina de 11 anos de praticar aborto diretamente no Hospital, fazendo com que ela e sua mãe necessitassem de uma decisão judicial para o ato. O Código Penal prevê que, nos casos de estupro, o aborto praticado por médico é permitido e, sendo a gestante incapaz, é necessário o consentimento de seu representante (CP, Art. 128, inc. II). A autorização para que a menina de 11 anos, grávida em decorrência de um estupro e acompanhada de sua mãe no ato, praticasse o aborto, era decorrente da interpretação legal.

A audiência divulgada pelo Intercept e a atitude da juíza Joana Ribeiro Zimmer é reflexo de um sistema que fere direito de crianças e adolescentes, em especial do gênero feminino, e que anda em descompasso com os interesses das crianças. Não é exceção vermos violações de direitos no próprio Poder Judiciário e não é raro que leis protetivas se tornem letra morta, até para magistrados e promotores, em decorrência da cultura menorista que ainda está vigente em nosso país. Tratamos as crianças e adolescentes como mero objeto da norma e não como sujeito de direitos.

Depoimento sem dano

Inicialmente, cabe destacar que há uma lei vigente em nosso país que é muito importante para a proteção de crianças e adolescentes. A Lei n. 13.431/2017, conhecida também como lei do depoimento sem dano ou da escuta especializada, estabelece o sistema de garantia de direitos da criança nos casos em que ela for vítima ou testemunha de violência e alterou o ECA justamente para prever que, nestes casos, a criança deve ser ouvida por profissional especializado para a escuta de crianças, assegurando-se a utilização de técnicas para elucidação dos fatos, entre outros cuidados necessários.

Há no processo laudo psicológico que atestava a questão da saúde mental da criança estuprada e, mesmo assim, durante a audiência, a criança é colocada sentada, sozinha, na frente da câmera, para responder perguntas agressivas sem qualquer compaixão e empatia. Ou melhor, sem qualquer atenção às normas protetivas que estão em vigor no Brasil, seja a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, outras leis esparsas, como a já citada, e diplomas internacionais ratificados pelo país como a Convenção sobre os Direitos da Criança (Dec. n. 99.710/1990).

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Culpabilização da Mãe da vítima

Note-se que a juíza chega a fazer uma série de perguntas desnecessárias sobre a gravidez decorrente do estupro, tal como se a criança sente o feto mexer, mesmo que o pedido da ação seja justamente para praticar o abordo. Pergunta, ainda, se ela sabia como engravidava e com a resposta negativa ainda completa: “sua mãe não tinha te explicado?”. Na criação de crianças e adolescentes, o pai não importa ao Judiciário e à sociedade. Quem carrega a “culpa” é sempre a mãe e ainda mais uma culpa inexistente imposta pela juíza em razão de um crime praticado contra a criança por um estuprador, o que afeta certamente também essa mãe, que criou a filha sozinha e buscou ajuda do Estado e tutela jurisdicional para lidar com o crime de forma adequada, como a lei determina.

A persecução criminal, a punição do agressor, nada disso parece importar na audiência. É importante dizer que a juíza não estava sozinha na sala com a criança. Lá estava também uma representante do Ministério Público, órgão que tem a função de resguardar direitos e interesses da criança. O que o MP fez? Ficou silente diante da agressão processual e psicológica perpetrada pela juíza? Não, fez pior: revitimizou ainda mais a criança, quase que a acusando de que seria autora de um crime de matar o feto. O crime de estupro também novamente parece não importar. Inclusive, o estuprador foi de criminoso a “pai do bebê” durante a audiência pelas falas da juíza.

Ainda que a menina diga claramente que não quer ver a criança nascer e crescer, a juíza repete a pergunta e revitimiza a criança sem pudor, inclusive ferindo a própria lei do depoimento sem dano, que identifica que há violência institucional quando há revitimização, passível de reparação. A juíza continua tentando obrigar a criança a gestar esse bebê decorrente de violência sexual gravíssima que sofreu para que um casal de adultos fique “feliz” porque ela poderá fazer a entrega voluntária após o nascimento. Parece que invertemos os valores constitucionais de prioridade absoluta e integral, vez que agora o Poder Judiciário autoriza usamos crianças violentadas para fazermos adultos felizes.

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Separação da vítima de sua família

Além da questão do estupro, há outra clara violação. O ECA diz, em seu artigo 19, que é “direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. O acolhimento institucional é sempre excepcional, embora no Brasil a gente pareça se esquecer deste ponto, já que temos mais em torno de 30 mil crianças acolhidas, muitas delas em prazo superior ao que determina o ECA, e somente aproximadamente 4 mil disponíveis para adoção. As demais, portanto, aguardam uma decisão do Poder Judiciário e a articulação da rede de proteção e assistência social para que sua família esteja apta a recebê-la novamente.

Como no caso de Santa Catarina, não raro o Judiciário e a rede de assistência, como o Conselho Tutelar, por exemplo, usam o acolhimento institucional não como proteção, mas sim – ainda que inconscientemente e submetidos à realidade menorista ainda não superada – como punição à criança que já se encontra com direitos violados, vez que, constatada uma possível violação, a primeira opção é institucionalizar e não buscar alternativas para que que o agressor saia do lar ou que seja feita uma efetiva busca de família extensa que possa ficar com a criança até que o lar esteja apto ao seu retorno.

Aliás, punição de crianças e adolescentes com direitos violados que começa na ausência do Poder Executivo ao não estruturar política pública prevista no ECA que seria o acolhimento familiar, o que seria mais indicado para a proteção integral e absoluta dos direitos infanto-juvenis no caso de necessário afastamento da criança ou adolescente da família de origem (ECA, Art. 34, § 1º). Assim, institucionaliza-se, depois resolve-se o destino daquela criança, e os efeitos desta decisão são severos, porque o abrigo não é um local feliz, seja pela condição das crianças seja dos funcionários que lá trabalham, que normalmente são remunerados com salários baixos e não recebem treinamento adequado para o exercício da profissão.

O encaminhamento da criança em Santa Catarina ao abrigo não representa só falta de compaixão e empatia ao ouvir o clamor da mãe e da menina para o retorno para casa e não atender, representa uma violação expressa do que diz a lei e uma tentativa de que a decisão da juíza e da promotora, tomada ali em audiência de que a criança teria que “segurar mais um pouquinho o bebê na barriga”, seja efetivada, ainda que isso custe a saúde mental da família, a falta de punição do agressor e um risco de morte à criança. Quando o caso for revisto pelo Tribunal, já será tarde, o dano já está feito.

Portanto, ainda que o CNJ e a Corregedoria do TJSC digam que vão apurar a conduta da juíza, o tempo vai passando e o caso segue sem desfecho. A gravidez continua e a menina segue abrigada, longe de sua família. O ECA violado várias vezes, assim como o Código Penal, a Constituição e a Convenção sobre os Direitos da Criança. O tempo do processo não é, definitivamente, o tempo da criança!

Marília Golfieri Angella
Marília Golfieri Angella

*Marília Golfieri Angella é sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do FGV Law.

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