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O dinheirinho do mercado - crônica de Paulo Bueno

Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, um papo de pai. Com humor e emoção.

Paulo Bueno* Publicado em 15/12/2021, às 10h22

Paulo Bueno é colunista do Papo de Mãe
Paulo Bueno é colunista do Papo de Mãe

No tocante à ida ao supermercado há duas espécies de pais: os que se apavoram em levar o filho e os que se regozijam. Embora me encaixe no segundo perfil, reconheço que há fundamento no medo do outro grupo. Minha geração tem um trauma, é gente que cresceu assistindo à propaganda do garoto que se atirava ao chão exigindo brócolis e chicória. Chicória! Quem comia chicória na década de noventa? Talvez por isso tantos dessa geração sejam adeptos do veganismo, após uma infância entupida de refrigerante, bolacha recheada e doces.

Hoje, quem não libera tais guloseimas está sempre à mercê de um escândalo semelhante. Eu mesmo já presenciei algumas cenas do tipo. Porém, mais comum que a birra, são os pais e mães que cedem de pronto, se antecipando ao iminente escarcéu.

Pedro, coitado, antes mesmo de saber falar, já escutava da boca do pai que não poderia ter tudo que pedisse na hora de fazer compras. Daí seguia-se o ritual: no princípio, solicitava com um tom sóbrio, lançando mão de argumentos bem construídos; ao primeiro “não”, replicava com uma voz manhosa e insistente; diante de nova negativa, suplicava com sonoras pisadas no chão (sem sair do lugar) e sacolejava os braços; em seguida, as lágrimas escorriam e os sólidos argumentos iniciais davam lugar a grunhidos ininteligíveis e pranto copioso. Por fim, acabou se adaptando e parou de pedir.

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Ele sempre me acompanhava, mas quando veio a pandemia, passei a ir sozinho. Fez uma falta danada. Quase um ano e meio enfrentei solitariamente os corredores que antes serviam de pista de corrida. Eu era o piloto, Pedro passageiro. Pequenos acidentes eram inevitáveis. Por isso redobrávamos a prudência perto das prateleiras de vinhos, cervejas, azeites e calcanhares desatentos.

Recentemente, passada a fase mais aguda da pandemia, voltei a levá-lo comigo para fazer compras. Assim que entramos no corredor dos laticínios o passageiro solicitou parada (o que seria? Um pit stop? Reabastecimento?).

- Papai, o Caique que é da minha escola bebe esse leitinho. Ele semple leva, todo dia.

Tratava-se de um desses achocolatados – tipo Bela Gil, só que mais caro – sem adição de açucares, sem glúten, cem ($) calorias, sem lactose, sem leite, sem chocolate (era quase uma chicória). No meu tempo chamávamos de água. Dois litros de leite! Com esse dinheiro daria para comprar dois litros do leite que Bela Gil não bebe, aquele comum. E o “leitinho” do Caique só vinha 250 ml. Pra quem não lembra, o comercial do garoto-chicória era pra vender achocolatado, nunca foi sobre legumes.

- É muito caro filho.

- Mas então por que o Caique consegue complar?

- É porque tem pessoas que tem mais dinheiro e outras que tem menos.

- Eu sei, eu sei – interrompeu-me, com a petulância que é própria àqueles que são versados num dado assunto – e a gente é do tipo das que tem menos dinheilo.

Riso amarelo, cartão de crédito no vermelho, seguimos pelo corredor de produtos de limpeza, sempre atentos a observância dos limites impostos pela lista de compras.

Na hora passou despercebido, foi só no outro dia que eu senti – tipo aquela dorzinha de vacina que só faz doer no dia seguinte, quando se acorda. Acordei. Doeu. O ego.

Outro dia, falando de trabalho, tive que explicar-lhe a verdadeira motivação que leva parte da humanidade a pegar no batente.

- As pessoas trabalham pra ganhar dinheiro filho.

- Ah!!! Aí como você nunca tem dinheilo, você tlabalha bastante.

Além de paupérrimo, Pedro me vê como um pai ausente. Mais essa! E prosseguiu com suas reflexões:

- Quer dizer, eu sei que você tem dinheilo, mas só dá pla complar comida com o seu dinheilo. Mais nada.

Até tentei explicar que meu ordenado serve para pagar muitas outras coisas, como viagens, boletos e brinquedos, mas desisti. Percebi que o esforço só aumentaria a humilhação.

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O louco é que a gente mira no anticonsumismo e o que a criança acaba captando é a ideia de que vivemos na penúria. Antes do início da pandemia eu era o maior piloto de carrinhos de supermercado; hoje sou visto como pai ausente, na pindaíba, mal conseguindo custear os alimentos que come. Que se dane a educação financeira!

Nos arrumamos para ir à praça, pois se me faço ausente é tão somente na medida necessária para o restabelecimento de uma presença que não sufoque. E é sabido que só há fôlego quando respeitamos os intervalos de resfôlego. Assim que descemos no elevador, Pedro se deteve nas flores do pequeno jardim da entrada do prédio. Pensei em falar que morar ali não era de graça, mas notei que não havia contexto. No caminho ele me disse:

- Papai, sabe o tamanho da felicidade que fique quando vi que a flor tinha clescido?

- Não filho. Qual foi?

- Foi o tamanho de cem sorrisos juntos, só que todos em um só.

Segurei a lágrima e me dei conta de que toda vez que recolho essas palavras, exclamações, trocas verbais, percepções de mundo, e pedaços de frase que Pedro vai largando pelo caminho (nos recônditos do espaço que se forma entre pai e filho), quando me dei conta de que guardo todos esses fragmentos num relicário da memória, constatei que tenho uma fortuna invendável.

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Paulo Bueno

*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.

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